segunda-feira, 27 de maio de 2013

NÃO HAVERÁ MAIS NATAIS


Monstro? Talvez.
Santo? Provavelmente.
Honesto? Digamos que...
Desonesto? Depende.

Exatamente como você
Porque iguais,
Humanos.


Para quem bem viveu o amor
Duas vidas que abrem
Não acabam com a luz.

São pequenas estrelas
Que correm no céu,
Trajetórias opostas
Sem jamais deixar de se olhar.

É um carinho guardado no cofre
De um coração que voou.
É um afeto deixado nas veias
De um coração que ficou.

É a certeza da eterna presença
Da vida que foi na vida que vai.
Saudade da boa, feliz cantar.

Foi bom e pra sempre será.
             
                              (Luiz Gonzaga Júnior)


Pro Leone, meu filho
uma rosa inesperada                                    
num campo de batalha. 




                                              
chove chuva miúda, pouca para impedir a pelada dos sábados, lama e calçada esburacada na esquina, terreno desnivelado, pedriscos e cacos de vidro arrancando cabeças de dedos, inaugurando cortes.
                             Atividade de alto risco o futebol naquele campo improvisado.
                             De um lado o muro-baliza, do outro, chinelos-traves, uma discussão infernal: foi trave, passou por fora, gol, todo mundo com razão, o ângulo de visada do observador é que determina a trajetória aparente da bola, todo movimento é relativo.
                             Einstein! Elementar, mas ninguém sabe disso e cada jogador uma opinião.
                             Melhor, uma certeza, e a discussão, porrada, pára o jogo, assim não dá, vocês estão roubando... O time de fora, o que jogará com o time vencedor, partida de dois, vendo gol até na saída da bola pela lateral.
                             Pára a bola, olha as garotas, a garotada toda mexendo, assovios, gracinhas, as duas, a loura e a mulata, rindo, até que a loura pergunta à acompanhante: “viu o baby?”
                             Incógnita em prova final de matemática: quem de nós é o baby? E continuam andando, o jogo parado.
                             Olham para trás, justamente pra mim, senhor meu Deus, pai dos tímidos e desarvorados, o baby sou eu, justo eu, e com o indicador faço o gesto e balbucio “vou aí”, bem articulado, para permitir a elas e a todos a leitura labial, lenha na minha fogueira da vaidade.
                             Param, esperam e alguém se propõe a me substituir no jogo.
                             Não! Volto logo, álibi por não ter o que falar, maldita timidez, “logo mais às sete no parque”, e volto correndo, dá a bola ao goleiro, sai logo, cara, passa a bola.

Papai chega zangado não sei porque, cheira a álcool, discutiu com mamãe e vai logo dizendo “ninguém sai, todo mundo dormir cedo hoje”.
                             “Mas pai, o parque...”
                             “Você já ouviu, não me aporrinhe”, e as meninas, a loura e a mulata, de que adiantou parar a pelada, engolir em seco a timidez, marcar encontro... Dormir cedo, que merda!
                             Ainda não será desta vez que a mulata começará a morrer.

Há uma roda gigante, carrossel, muitas luzes, gente, muita gente circulando feliz.
                             Estou num parque de diversões. Alguém passa comendo algodão-doce, há cheiro de pipocas e vejo as duas, a loura, falsa loura, e a mulata, minissaias e blusões largos, de homem, talvez dos irmãos, sandálias gregas, longos cadarços enlaçando os tornozelos, canelas, chegando quase aos joelhos, as mesmas da esquina, as que me esperaram aqui mesmo na semana passada.
                             Vou à cabine de som e ofereço uma canção: “alguém próximo da carroça de pipocas, de blusão verde, oferece a próxima canção às duas fadas que passeiam no parque, vestidas...”, e lá vem Roberto Carlos:

Olha aqui, presta atenção
Esta é a nossa canção
Vou cantá-la seja onde for
Para nunca esquecer o nosso amor...

                             Risadas cúmplices, assentimento de chegada, mas não me aproximo. A maldita timidez só permite um sorriso amarelo e tosco. Vão embora.
                             Daqui a exatos trinta e nove anos matarei a mulata. Impiedosamente a matarei.

O mesmo portão de três, quatro anos atrás, olho grande na ex quase ex, quase mulher agora, longilínea e toda certinha, em todos os sentidos, lotada de encantos, olhos ariscos e peitos durinhos.
                             “Encontro como, se minha mãe não me deixa sair? É mais fácil namorar a minha prima”.
                             Essa não que centímetros a menos e quilos a mais, e fala gritando, maritaca enlouquecida esbanjando risos pra qualquer um, já estou quase atrasado para a prova de Descritiva, esquadros, compasso, régua T, de cálculos...
                             Por que demorarão tanto a inventar essas maquininhas de calcular, meu Deus?
                             O cadernão A-2 e o estojo com as lapiseiras: A, B, 2B, HB...
                             Mais difícil carregar a tralha toda no ônibus lotado que fazer a prova, e as duas novamente, a loura e a mulata, passam só olhares e sorrisos. Dão o volta no quarteirão.
                             Vêm conversando sorrisos indiscretos, propositalmente chamativos, olhadas de vou te engolir, riso meu de troco, ciúme da ex quase ex.
                             Nova volta no quarteirão, passos lentos, bem lentos, talvez para eu segurá-las, e não haverá terceira nem quarta voltas no quarteirão pequeno agora, tão rápido retornam.
                             Faço sinal para que parem, me esperem.
                             “Oi, quantos bolos e desencontros, hein! Você deixou a gente esperando no parque duas vezes. Gosta de dar suadouro; garoto difícil hein!”
                             Dizer que pai prende e escola em primeiro lugar, território pequeno e limitado, em espaço e tempo, já condicionado como um cãozinho de estimação, nunca!
                             Papo vai, vai mais ainda, ainda mais e... “Vamos ao cinema?”
                             Entreolham-se. Ele está chamando as duas? Nó de dúvida. Só quer ser nosso amigo ou o miserável é garoto de harém, ir ao cinema com as duas?
                             Maldita timidez que atrapalha a ordenação dos pensamentos. Loura não que loura não apraz, será assim a vida toda, “com você”, olhar na direção da mulata, a branquinha se despedindo, mal disfarçando a frustração, que azar! Um baby só para duas, uma ficou sem, e a prova ficando para segunda chamada, esforço maior na feira.
                             Pedir dinheiro em casa, pra taxa, é confessar gazeta, mal sabe a mulata que começará a morrer agora.

II


Menstruação atrasada, vinte e poucos dias, e o teste na farmácia, nossas brincadeiras infantis de reconhecimento físico, extrapolação de enciclopédias sexuais, conversas de esquinas e revistas proibidas jogando-nos às costas toda a complexidade das relações adultas, o que fazer?
                             Confidencio à minha irmã, “caramba, e agora? Mamãe tem que saber”; a papai, “você tem merda na cabeça?” A vovô, vovó... Que fazer?
                             E os sonhos infantis transpondo o portal do que deveria ser maturidade, como se emprego, casa, mobília pudessem surgir do nada, brotassem do chão, se materializassem na ponta de uma varinha de fada, todo mundo preocupado, menos nós, felizes, presos para sempre nas algemas daquele neném, projeto ainda, células-tronco erigindo-se gente e compromissos e necessidades e sacrifícios, promoção compulsória ao mundo dos adultos.
                             E a assembleia em que não consegui direcionar o meu ponto de vista, não tive voz ativa, não influi, limitando-me a voto vencido, sem vez e sem voz: “na porta de uma universidade? Da academia militar? Desistir de ser piloto? Vale o sacrifício? Menina negra, mãe viúva, vocês crianças ainda, desemprego, sem teto, maluco, eu pago a resolução do problema, eu também, queremos o melhor pra você, não entra nessa, vai se arrepender, só dezoito anos...” Um longo rosário de preconceitos à farta debulhado.
                             Abortar ou não abortar, o dilema estampado em cada átimo daqueles dias.

Cheguei da escola tem pouco, janta não, preocupado e, entre o sono e a vigília, meio barro meio tijolo, nem dormindo e muito menos acordado, a vozinha infantil, súbita e musical, plácida como num conto de Grimm, instaurando o pânico, que é isso, meu Deus!
                             “Calma que não vou lhe fazer mal, calma, você vai ficar calmo”, e uma celestial tranquilidade como jamais voltarei a sentir na vida.
                             Logo percebo que não me fala ao ouvido, mas direto na cabeça, “quem é você?”
                             “Não posso dizer, não tenho ordens, quero conversar contigo, é importante, não me feche a porta.”
                             Prematuro pretenso intelectual, crente da sabedoria e de todos os conhecimentos postos à mesa, à minha disposição, ouso: “de onde você vem?”
                             “De longe, longe, muito longe.”
                             “Na velocidade do som?”
                             “Não, muito, muito mais rápido.”
                             “Na velocidade da luz?”
                             “Não, muito, muito mais rápido.”
                             “Acima da velocidade da luz não há mobilidade...”
                             “Eu venho na velocidade do pensamento, é instantâneo.”
                             Só voltarei a ouvir isso, melhor, ler, quando daqui a alguns anos tomar conhecimento da literatura espírita.
                             Ainda sou católico e toda a minha cultura religiosa se restringe ao catecismo, antes da primeira comunhão, e da vida dos santos, minha avó coleciona as revistas que saem mensalmente.
                             Continuo conversando, por pensamento, até que quase no fim sou alertado de que me esqueceria de tudo o que foi dito, mas que, nesta existência, usaria as informações na medida em que fossem necessárias, e concluiu: “não faça o que querem que você faça. A sua missão é viver entre nós. Você viverá entre nós em cada dia da sua vida, e quando chegar na hora de voltar um de nós estará ao seu lado, na sua cabeceira.”
                             Antes que eu possa refletir, adormeço.
                            
São quase dez horas da manhã. Mamãe não estranha a mudança de comportamento, acordar antes do sol, junto com os galos e os operários da fábrica de tecidos rumo à estação, a maria-fumaça engolindo trilhos, trabalhadores e marmitas. 
                             Mulher grávida, motivo de ficar na cama pensando.
                             Tento me lembrar ao máximo do ocorrido, cada palavra, cada entonação, cada ponderação, a doce e melodiosa vozinha infantil e... Eureka!
                             Visto-me correndo e vou à casa da mulata: “você não vai fazer o aborto! Nós vamos casar!”

Casa pobre, poucos convidados, a voz de um tio, “pelo menos esse a gente sabe que é homem”, ironia e maledicência por causa do meu jeito orientado por vovô.
                             Confundiam educação e requinte com viadagem, sensibilidade com baitolagem, “ele escreve versinhos e vive colorindo desenhos. Sei não”, os tios paraíbas que não gostavam de flores porque flor não serve pra comer, a mulata maquiada, vestido branco, véu e grinalda camuflando o nosso segredo, momentos antes, na igreja, até que a morte os separe, “sim”, linda na carinha infantil de menina violentada, o meu terno que bem poderia caber mais um de mim, igreja cheia, família conhecida, pioneira de muitos anos no bairro, casando o filho mais velho, tão novo ainda, os dois, como é que os pais consentem?
                             Bocas de matildes e cassandras, chuva de arroz, vai fazer falta um dia, a grinalda jogada, minha irmã, foi mesmo a próxima a casar, coincidência, o bolo, as fotos, lua de mel no mesmo bairro, casa próxima mobiliada pela família, a irmã dando louça e plásticos; papai o fogão; mamãe os paninhos de prato, de mesa, colcha, lençol, cortina, guardanapo; vovô as poltronas, mesinha de centro, o armário de cozinha; panelas fui eu que comprei; o dormitório antigo, Espandelli, segunda mão, onde dormi na infância, voltando pra mim, vovó comprando outro, inferior, capricho de vó; geladeira e televisão só um dia, quando melhorar o meu salário, nós dois, eu e a mulata, passando na praça, mãos dadas como em tantas outras vezes, um oceano de sonhos à frente, manhãs luminosas e safras perenes de fartura, felicidade a disposição em estoque ilimitado.
                             Sonhos, sonhos, esperanças esparramadas sobre nós, reduzindo tudo a sorrisos porque qualquer outra coisa longe de nós, estranha e sem despertar interesse.
                             Mesmo quarto, mesma sala, mesmo ar a nos fazer arfar, tudo comum.
                             Mais tarde os filhos, patrimônio.
                             O oceano dos sonhos não é de água, é de luz que cintila e incandesce, lateja cores e esbanja tons numa tempestade indescritível de orgasmos e lágrimas de felicidade.

Na sala de espera da maternidade emendo cigarros, ansioso, todo nervos expostos esperando notícias.
                             Nem bem fiquei homem serei responsável por outra criança, mais amiguinho que filho.
                             A enfermeira sai da sala de parto: “nasceu, pai, é uma menina”.
                             Quero ver o bebê, “não pode”. Então a mãe, também “não pode. Vai pra casa e volta na hora da visita”, a curiosidade roendo dura*, comigo rindo sozinho na rua, demente, no ônibus a impressão de que todo mundo olha, a vontade de gritar eu sou pai, sou pai, me ouviram?
                             A primeira filha, a mais velha. Os outros serão repetições, alegria multiplicada, mas sem a pompa do ineditismo.
                             Minha filha é linda, gordinha, esperta, e não tenho mais só uma namorada de papel passado.
                             Tenho agora uma família. Minha esposa não é mais só uma garota desvirginada, é uma mulher. Nado em nuvens, voo em jardins, esbarrando em flores, só sorrisos.

*Não havia ultrassonografia ainda. Sexo e condições físicas do bebê, só na hora do parto.


III                        

Meus anos foram todos medidos em natais, sempre separados por festas juninas, vizinhas de páscoas, explosões de risos e chocolate depois de longos porres quaresmais, os santos cobertos de roxo e os sorrisos proibidos, Deus está morto.
                             Não havia ainda décimo terceiro salário, nem gratificação, nem bônus, debêntures, retirada... Só a multiplicação da poupança familiar, com pães bíblicos fazendo-se brinquedos e mesa farta e roupa nova, papai-noel compensando o miserê do ano todo.
                             Virou vício de tal maneira ancorado na dependência que reservei biscates, serões, poupança, empréstimos... Para semear sorrisos na geração seguinte.
                             Diante do doce exagero, do chão até quase o teto, lâmpadas multicoloridas piscando a intervalos variáveis, criando ritmos, embalando sonhos, ornando o futuro passado dos meus netos, todo o arsenal de enfeites das lojas: bolas das mais variadas cores e brilhos, papais-noéis, anjos, sinos, bichinhos, chapéus, bengalas, réplicas de frutas em miniatura... De maneira que ao observador infantil haja sempre novidade a cada vez que olhe, a árvore resplandecendo como uma torre de luz entre presentes, a mesa-bandeja importada da minha própria infância mastigando nozes, avelãs, amêndoas, ameixas, rabanadas, pavê, torta, canjica, aletria...
                             Anunciando novidades desconhecidas: tâmaras, damasco, pistache humilhando as passas e frutas frescas do ano todo, me dá a coxa do peru, mais uma fatia do pernil... O menino Jesus nasceu e quem está ganhando o presente sou eu.
                             Pequeno, eu sonhava com os meus olhos. Agora, sonho com os olhos dos netos e dos filhos dos vizinhos.
                             J., a matriarca, cansada de forno e fogão, atarefada ainda em servir, “olha esse menino aí, vai cair da cadeira”. “Onde você colocou o vinho, tigrão?”
                             As crianças da vizinhança vindo pegar presentes também.
                             É comprá-los a mais que mais crianças chegam, cada vez mais, em todos os anos, “pode pegar, fica com vergonha não, quer refrigerante?”
                             Se a felicidade existe me espera em todos os natais, como virtuosa esposa na janela, desejo e saudade, vendo o navio que partiu a um ano chegando agora.

                            
Pai e mãe, a pobre, desdobrando-se no serviço doméstico, nas atribuições de mãe, e ainda tendo que ser pai, só reservando para mim os detalhes mais graves, “vou dizer ao teu pai, deixa ele chegar”, o que em nada influi na vida conjugal, recebendo-me gueixa só sorrisos, café na mão, comida no prato, sempre pronta ao agrado, fazendo-se tonta ao evidente, eu pouco paro em casa, domando o ciúme, transformando-o em atenção e carícias.
                             Eu ainda a acredito mulher mais que irmã, esmerada esposa investindo na velhice, fazendo ouvidos de mercador à maledicência de vizinhas e parentas, “um dia ele cansa, se aposenta, põe pijama e vem pra minha cama de vez”, já morrendo aos poucos sem saber.

Estou atarefado, completamente absorto com um monte de provas e relatórios a corrigir, e observo Jocasta, enxada na mão, vermelha de sol, suada em bicas, capinando o meio-fio.
                             Está envelhecendo, estamos envelhecendo, penso, analisando-lhe as formas mais arredondadas, mais flácidas, as primeiras rugas debutando, concentrada e alheia no seu mundo de só filhos e marido, casa e afazeres domésticos, pouco ousando além da cerca e nada sabendo das ruas.
                             Sou mais afortunado em rugas. O tabagismo e a vida intensa, as noites de pouco sono, apreensão e raiva política... Compondo a geografia do meu rosto que ilustrará o passado dos meus netos correndo no quintal.
                             Somos tão íntimos agora que nos adivinhamos em olhares, cada um sabendo exatamente o que o outro está pensando, mais irmãos que cônjuges.
                             Amo-a de amor sem fim, órgão a mais na minha magra anatomia, mas de desejos poucos, embora consciente dos atrativos de sedução ainda presentes e do desempenho convincente.
                             É a mulata que me chamou baby, e baldia e tonta, alojou-me em seu coração.
                             Está morrendo e não sabe.
                             Mudou o tratamento, não sou mais baby, promovido a tigrão: “vai almoçar agora, tigrão? Que cara é essa, o que você pretende comigo, tigrão? Ligaram pra você, tigrão.”
                             Coerente com os meus sentimentos, eu a chamava filha, embora pudesse chamá-la mana, tão diferente e indiferente eu estava, num calvário de piedade e irritação, amando-a o bastante para não ir, mas não o bastante para ficar.

IV

Agora transito por um período dos mais estranhos já transitados por mim, como se eu atravessasse um intervalo na minha vida.
                             Sem nem mesmo perceber, perdi o gosto por tudo: parei de pintar, de escrever, dar aulas, fazer locução no rádio... Por absoluta falta de vontade.
                             Até tento escrever, só conseguindo pouco mais que redações de colegiais, com montes de papéis se acumulando no lixo.
                             Minhas leituras, pouquíssimas, reduziram-se aos livros técnicos, quase todos ligados às atividades agropecuárias, matrizes dos meus sonhos surreais, onde me vejo fazendeiro no interior do país.
                             Meus filhos e minha mulher estão preocupados, questionando se descobri alguma doença grave, perdendo o gosto pela vida, desligando-me, e não só emocionalmente, de todas as atividades, passando a bola para os herdeiros.
                             Comentam com alguns dos meus irmãos, que se tornam cúmplices nas suspeitas.
                             Se não tenho uma explicação nem uma justificativa para o que está acontecendo, habita em mim a estranha sensação de que haverá uma mudança radical e definitiva na minha vida, com momentos em que me surpreendo na expectativa da morte se aproximando.
                             Há um sentimento de inutilidade em tudo o que faço. Tudo perdeu valor, e adiante só uma incógnita de impossível decifração.

Estou em meu estúdio, cercado de livros, diante do computador, a prancheta ao lado, papéis, a pena de nanquim...
                             Redijo e ilustro uma apostila de horticultura orgânica, e o telefone me interrompe: “pai, a dona Carmem, supervisora da Secretaria de Educação, está aqui e quer falar com o senhor.”
                             Maldigo o contratempo, mudo de roupa rapidamente, manobro o paleolítico fusquinha, carinhosamente tratado por mim por “Jacozinho”, e me dirijo à escola.
                             Despacho com a dona e resolvo dar uma volta por corredores e salas de aulas, para rever alunos e funcionários, já esquecido da substituição temporária da professora em recuperação, cirurgia bem sucedida, quando me deparo com ela, esguia, magra, muito magra e morena, os cabelos alvoroçados, como que saída dos meus sonhos, como se eu a estivesse esperado sempre, íntima e familiar, para o meu espanto.
                             Surpreende-me sentimento desconhecido, algo assim como pai descobrindo filha que não supunha existir, ou recebendo de volta uma filha que partiu a muito, séculos atrás.
                             Nada ouso dizer, nem mesmo cumprimentar, na estupefação sem motivos conscientes.
                             Retorno à secretaria e minha filha percebe o meu estado de espírito: “o que é que houve, pai?”
                             “Nada, por que?”
                             “O senhor está estranho!”
                             Aguardo a hora da saída, para vê-la ainda mais uma vez, e minha filha a apresenta: “esta é fulana. Está substituindo a V.. Olha que coincidência: foi minha colega nos bailes do colégio. Casou com um amigo nosso, o sicrano. Que coincidência, né?”
                             A tarde o trabalho não flui, não avança, as ilustrações tremidas e violentando as regras de perspectiva e volume, o texto tati-bi-táti me levando à rede, a permanecer deitado, de barriga para cima, destilando oníricos questionamentos: de onde a conheço? Onde a vi? Por que tanta fragilidade e carência no olhar?...
                             E não são questionamentos do homem, sexuados, mas do eu absoluto identificando um novo reencontro, com ela ocupando tanto espaço nos pensamentos que mais espaço nenhum de sobra, para nada.
                             Volto a freqüentar a escola, mas totalmente desinteressado da escola, dos seus trâmites, do dia-a-dia.

Busco motivos para circular na escola, criando oportunidades de passar pela porta da sala em que está trabalhando, cada vez mais tomado da certeza de que me é familiar, fantasiando como deve ser a sua vida, se é feliz, realizada, de uma maneira como nunca aconteceu antes com nenhuma colega.
                             É um sentimento e uma sensação assexuados, mais para o que eu sentia em relação às minhas filhas que à minha mulher.
                             Termina o período pós-operatório e a professora titular retorna.
                             Na hora da saída agradeço a colaboração, afirmando ter gostado do seu trabalho, com convicção garantindo que na primeira oportunidade ela será contratada, no meu íntimo a certeza de que não foi um encontro ocasional e passageiro, embora ainda não nutra nenhum interesse no plano da sexualidade.
                             Os dias prosseguem e a falta não arrefece, um vazio do cão, o mesmo que sentimos quando uma filha casa ou viaja, uma torcida louca para que se forme uma nova turma ou alguma professora se demita, para que volte logo.
                             E ela nem desconfia.

Como se estivesse indelevelmente escrito, pouco mais de um mês depois uma das professoras, chamada para posse na Prefeitura, pediu demissão.
                             Não titubeei: chamei a minha filha e... “Chama aquela moreninha sua amiga, a que substituiu a V.. Gostei do trabalho dela.”
                             Reintegrada à equipe, agora com vínculo empregatício, comecei o assédio, mas ainda sem consciência disso, movido unicamente por extrema curiosidade: de onde eu a conhecia? O que a fazia tão íntima, como se em presença contínua desde tempos imemoriais? Que necessidade enorme era essa, a de protegê-la?
                             Voluntariamente apartado da direção da escola, do rádio, sem pintar nem escrever, como afirmei, passei longas e intermináveis horas deitado na rede, pensando, imaginando hipóteses, chegando a questionar se não seria alguma filha ilegítima, que eu não sabia existir, retornando.
                             Anos depois escrevi uma novela, “O velho de novo”, mostrando todas as coincidências do encontro, como se, mais que necessário, fosse obrigatório.
                             Estranho é que os sentimentos eram confusos, engalfinhando-se em mim um pai e um amante, rivais e críticos, ambos policiando a estratégia do outro, enfrentando-se numa luta silenciosa e feroz, dolorida.
                             E principiei o assédio, da maneira mais primária possível, buscando mostrá-la uma realidade que não conhecia.
                             E, por instinto, sem planejamento ou premeditação, comecei a inventar desculpas que tinha coisas a resolver no bairro em que ela mora, acompanhando-a na condução.
                             Percebendo que a blindagem estava se tornando vulnerável, convidei-a a conhecer o Jardim Botânico.
                             Relutou muito, e o convencimento só veio na terceira tentativa, assim mesmo na condição de simples amigos.
                             Não abria mão do respeito ao marido, às minhas filhas (suas colegas de adolescência) e à minha mulher.
                             Teria sido mais fácil eu vender geladeiras a esquimós ou areia a beduínos.
                             E fomos ao Jardim Botânico.
                             Não rolou nada, nem nas intenções nem nas palavras, comigo desarvorado, sem saber ainda se a adotava como filha ou tomava como mulher, limitando-me a comentários sobre a flora, principalmente a anatomia vegetal.

V
         
Pouco afeito a festas, meus aniversários tiveram sempre a sobriedade de quase anonimato, embora, por motivos outros, ficassem sempre marcados nos calendários de todos.
                             As eleições foram sempre um dia depois deles. A Igreja Católica escolheu o dia em que nasci para comemorar o santo dia dos Santos Anjos da Guarda, sem esquecer das duas explosões nos paióis do exército, em Deodoro.
                             Ocorre que uma neta se apresentou a nós quarenta e seis anos e quatro dias depois de mim, de maneira que, filha de mãe festeira, nos aglutinaram, eu e a neta, em mesma data para as festas, comigo sempre mascando a estranheza de tudo e de todos, louco para fazer-se o silêncio logo, enquanto ela rogava aos céus o prolongamento do caos doméstico por toda a eternidade.
                             Hoje não é diferente, os parentes chegando, os amigos chegando, os amigos dos amigos chegando, os funcionários da escola chegando e... Ela, garça morena nas marés dos sonhos inundando os meus olhos assustados para não traírem-se e me entregarem na bandeja: apaixonado.
                             Sempre tive o cuidado, o meticuloso e quase cirúrgico cuidado de não misturar família e aventuras, fossem de ordem sexual, sentimental, política ou profissional, com a família apartada de tudo o que não fosse a família, hoje em festa, rendendo-me homenagem.
                             Olho-a apoiada na coluna do salão, cercada de amigas, preocupada com filho e sobrinho, e olho para Jocasta, a mulata, orgulhosa no afã de servir a todos, devotada anfitriã, cuidando para que nada fuja à impecabilidade, uma filha ou outra, a nora, ajudando.
                             Não sinto remorsos nem complexos. Não somos amantes, talvez nem amigos, só simples colegas de trabalho e longa conversa no Jardim Botânico, o trivial científico, sem ousadias, no mais estrito e comedido respeito mútuo.
                             Os muros de proteção que ergui em torno da família permanecem sólidos e incólumes, separando-a das ruas e dos meus relacionamentos, e principio a me perceber corpo estranho ali, incomodado, louco para a festa terminar.

Aperto o cerco e marcamos encontro. Não rola nada ainda, ela avessa, alegando marido, nunca fez isso, minhas filhas, minha mulher, o filho dela, a mãe... O mundo todo conspirando contra minhas intenções de não mais sentindo-se pai, mas homem mesmo, disposto à conquista, ainda que muito difícil, para mais incentivar, delicioso desafio.
                             Percebo que também já está envolvida, realizando prodígios de doce cinismo para me esconder os indesejados desejados sentimentos, fazendo-se de tonta para esconder de todos e até dela mesmo.
                             À mãe dirá que “estou apaixonada, e agora?”, em confidência mesclada de felicidade e medo, muito assustada.
                             Na casa da amiga que a apresentou na escola se debulhará em lágrimas: “ele casado, eu casada, as filhas minha amigas, não posso fazer isso com meu marido, não merece, nunca fiz, a mulher dele tão distinta, ele um senhor já... O que é que eu faço, meu Deus?”, a sentença já lavrada, sem recursos cabíveis, decretada acima das nossas vontades e determinações.
                             Se alheio estava à vida, solto, orbitando os meus próprios pensamentos, longe da escola, do rádio, sindicato, amigos, parentes, trancado em mim mesmo concentrado, em prenúncio de coisa nova e possivelmente definitiva, talvez a morte, como cogitaram mulher, filhos e irmãos, mais alheio fiquei, agora não mais solto, livre, mas enredado nos meus próprios sentimentos, desmedidos, avassaladores, sem juízo e sem controle possível.
                             E sem nunca ter me pensado tão passional, anulei raciocínio e razão, tornando-me só sorrisos e apreensão. Plagiando o poeta russo*, todo e só coração.
                             Preocupo-me com Jocasta, a mulata que comecei a matar em meados do século passado. Não suportará o impacto de uma separação.

*Maiakowsky.

VI

Estou no campus da Universidade Rural.
                           Já caminhei pelos corredores, pelos diversos prédios e pavilhões, mostrei-lhe a biblioteca imensa, as salas onde estudei, dividindo os meus sonhos com ela, em atmosfera de enlevo e encantamento.
                           Agora estamos sentados na grama, no gramado próximo ao horto, e, inesperadamente, sem nenhuma premeditação, o primeiro, desajeitado, rápido beijo.
                           Não será filha nem colega de trabalho, menos conhecida ou amiga, mas a mulher antítese de tudo o que planejei, uma explosão de juventude e sonhos que pensei perdidos bem antes de agora, em plena pré terceira idade.
                           Não há remorsos pelos nossos parceiros em casa, preocupação com as línguas alheias, satisfações a serem dadas ao mundo porque o mundo todo agora se esgota em nós dois sentados na grama, adolescentes de corpos envelhecidos redescobrindo-se.
                           Mais adiante vou escrever um poema em prosa.
                           Parêntesis: nunca me conformei com essa classificação!
                           Não seria melhor prosa poética ou poesia em prosa? Sei não.
                           Então tá: mais adiante vou escrever um poema em prosa:

“EU TE AMARIA

                           Eu te amaria como o mar, avassalador e total, capaz de gerar em si a vida, lambendo com a minha língua de sal os teus litorais morenos.
                           Não, não te amaria como o mar. Seria uma presença pegajosa e inconstante, feita em ondas de beijos rápidos nas calmarias e mais rápidos nos temporais.
                           Não, eu não te amaria como o mar.
                           Amaria como o vento, sempre presente, arejando, penetrando teus cabelos e arrepiando teus pelos, enxugando as lágrimas e o suor, as gotículas que sucedem os banhos, delicados e tépidos.
                           Não, não te amaria como o vento. E se a tempestade me mudasse o humor e eu te assustasse e te agredisse com a minha força e o meu som te isolando atrás das vidraças, com medo de mim? E se me fizesse ausente nas tardes mornas ou frio no inverno?
                           Não, eu não te amaria como o vento.
                           Amaria, agora sim, como o sol, em luz e calor, corando a tua pele macia e obrigando as flores ao desabrochar em formas, perfumes e cores.
                           Isso, isso sim, eu te amaria como o sol, único, mas o bastante, o suficiente, capaz de sustentar tudo e direcionar o vento e iluminar o mar e clarear os teus caminhos.
                           Mas... Pensando bem, eu não te amaria como o sol.
                           Como eu conseguiria te deixar só por noites inteiras e me fazer distante e ausente e alheio, permitindo que a ti assediasse o silêncio e a escuridão?
                           E se nuvens negras de temporais nos isolasse e me condenasse a brilhar para ninguém, anônimo e inútil no espaço?
                           Não, definitivamente eu não te amaria como o sol.
                           Eu te amaria... Não! Tenha a certeza de que eu não te amaria.
                           Não se pode amaria quando se ama.
                           E eu te amo.”

                           Mas só mais adiante. Na fase de paquera o meu cartão de visitas foi

“SONHO

                                                           Tal como um vitral
                                                           Teu corpo explode
                                                           Em cores e transparências
                                                           No instante do meu espanto.

                                                           Imaterial e efêmero
                                                           Brilha efervescente
                                                           Nos descaminhos da noite.
                                                          
                                                           Diáfano e volátil
                                                           Posta-se ao meu alcance.

                                                           Então acordo.”

Cansado da enxada, estou sentado na beira do lago, ao lado de casa, observando as tilápias, cascudos e pacus, com a cabeça longe, trilhando o passado, reconstituindo a história de Jocasta.
                           Ficou órfã de pai menina ainda, antes da adolescência, com o irmão caçula no berço, antecedida por uma escadinha de irmãos, seis menores que ela e dois mais velhos, entrando na adolescência.
                           Forçada às ruas, às faxinas, por nenhum estudo, para sustentar quase um orfanato, a mãe passou a administração doméstica a ela abrindo mão das bonecas e comidinhas de brinquedo para cuidar de bonecos de verdade e encarar fogão e vassoura de adultos, passando a ter dos irmãos, para sempre, a gratidão e a reverência de quase mãe.
                           Quantas vezes tive que esperá-la sentado na varanda ou na poltrona da sala porque estava dando janta a um , banho no outro, arrumando ainda outro para ir à escola, esmerada quase mãe escondida atrás dos olhinhos infantis, dos gestos menina reclamando vigilância e atenção também.
                           Compulsoriamente forçada à maturidade, ficou alguns anos à minha frente, bem mais madura, quase cometendo uma adoção.
                           E nos amávamos com a pureza das crianças e a intensidade dos prontos para a vida, como se senhores de nós e com força suficiente para dar provimento ao que viria.
                           Contrariando as duas famílias, a minha e a dela, e aos nossos próprios planos, antecipamos o casamento, com nossa filha mais velha presente, secreta dama de honra forçando a barriguinha ainda só ensaiada.
                           E vivemos de puro amor, numa intensidade indescritível, apartados do mundo lá fora, comendo, bebendo, dormindo, respirando um ao outro, em pobreza franciscana apoiada nos meus biscates e providencial ajuda dos meus pais, dos meus avós e até da mãe dela em partilha com os outros filhos.
                           Há nostalgia e saudade, um vazio cósmico em mim observando as tilápias, cascudos e pacus, quando sou interrompido por sua voz: “ei, homem, acorda pra vida. O almoço está pronto!”
                           Entro e acaricio seu ombro.
                           Ela sorri: “está com remorso de quê? O que é que eu não posso saber? Vai tomar banho que você está imundo, mas vê se não demora que não estou a fim de esquentar comida!”
                           É. Aprendemos a nos adivinhar em cada gesto, em cada olhar, no ritmo de nossas respirações.
VII

Os telefonemas se sucedem agora numa quase continuidade sem fim, a necessidade de estar juntos, ainda que intermediados pela prestadora de serviços telefônicos, o tempo todo: “bom dia amor, sou eu”, “estou indo dormir, amor, até amanhã”, aquela voz já parte de mim enamorado, alheio e aéreo, reduzido aos instintos mais primários, longe de qualquer coisa que não fosse o seu corpo, seu olhar de brilho e encanto se derramando nos dias.
                           Jocasta desconfiada, optando pela pior das táticas de reconquista e competição, o sufoco, inquirindo permanentemente “o que está havendo, você está diferente”, assediando, marcando sob pressão, vasculhando meu olhar, meus gestos, adivinhando os poemas que escondo numa aflição de mãe a cata do filho que não está.
                           Irmano irritação e gratidão por passado de felicidade, a família bem constituída, patrimônio comum, construído juntos que se não grande, o bastante para nunca mais voltarmos a comer arroz cozido na água e sal com rodelas de tomates crus e mais nada, uma vez por dia, refeição única, um copo d’água do filtro de barro por sobremesa, depois a minha ausência diuturna palmilhando os caminhos do mundo, garimpando o que trazer para casa, ela mãe e pai, governanta e vigia, “espera só o teu pai chegar, ele vai conversar contigo...”
                           Agora desarquivo a estante da libido, mergulho em meus hormônios e arrolo o inventário das conquistas, rostos, coxas, sexos em flashes rápidos, e concluo que nunca a traí, deixando-me só me emprestar por curto espaço, dando trâmite aos mecanismos da insaciabilidade que me obrigou a transpor todos os muros, a ultrapassar todos os limites, a romper com todas as convenções, contrariando o esperado.
                           Coisa de pele, de hormônios. Não mais.
                           A traição se dá agora porque não posso mais me dar.
                           Não me pertenço mais, não posso dá-la o que já não é meu.

A situação está perigosa, Jocasta em permanentes ameaças: “vou acabar com a sua raça”, “se não for meu não vai ser de mais ninguém”, e bem sei que em momento de destempero será capaz de dar a mais egoísta das soluções ao problema.
                           Se me preocupo aqui, tateando paciência e consolo, preocupo-me lá, semeando a luz da esperança: calma que tudo vai se ajeitar!
                           A informação, calcada em observações adolescentes, exagerada pela turma do contra empenhada em reduzir a cinzas a tormentosa história prestes a início, dá conta que o marido resolvia as suas diferenças alimentando-se na violência, drogando-se, no currículo contando hospedagem na penitenciária.
                           Administro agora todos os ingredientes de uma tragédia, impedindo que, próximos, se misturem, num turbilhão de sentimentos antagônicos e contraditórios mastigando os meus dias.
                           Convivem em mim um adolescente enamorado, dono de ferramentas capazes de permitir a caminhada para o futuro; um adulto desatando os laços da teia que criou; um ancião passivo e impotente assistindo a carruagem desenfreada, desfiladeiro abaixo, e sem forças para puxar as rédeas.
                           Envelheço horas a cada minuto. Morro-me só, sem nem mesmo um confidente, para mais doer.

VIII

Retomo agora todos os caminhos do meu passado, a morena ao lado, encantada, descobrindo um mundo novo, inimaginado.
                           Cicerono-a por galerias e museus, parques públicos, palmilhando-os como se fosse a primeira vez, meus olhos descobrindo quinas, cantos, ângulos, detalhes até então não percebidos porque agora vistos com olhos novos, conectados não à mente, mas ao coração acelerado, anunciando que a felicidade é possível.
                           Redescubro-me e, homem novo, é tudo diferente e ainda a ser vivido.
                           Mas a vida real me espera e me encontra a cada vez que digo a ela “até amanhã”.
                           Entro em casa e é como se eu não fosse mais daquele lugar, as flores que semeei já saudosas da minha presença constante, a cadelinha de estimação mais afável e fiel, pressentindo o adeus, e o vazio imenso de um homem partido, com parte plantada aqui e parte já longe, apartado de tudo o que foi parte dele um dia.
                           Há nostalgia pelo que foi, dor pelo que é, esperança pelo que poderá ser, o remorso antecipado a cada voz de filho, sorriso de neto, cumprimento de vizinho.              
                           Não há mais como esconder, minha cara uma declaração pública de coisa nova e arrebatadora, com o brilho dos que se encontraram em outro e em outro entenderam que sós eram menos que um.
                           Minha filha me cerca na calçada: “pai, porque você não se separa da minha mãe? A gente não vai mudar com você. É melhor que esse sofrimento de vocês.”
                           Calo-me. Como dizer-lhe que há em mim um mundo de conceitos e preconceitos resistindo à violação? Como confessar-lhe o meu medo da fragilidade da mãe apontando iniciativas e atitudes que não ouso imaginar? Como pronunciar sua mãe não vive sem mim, sem que ela não ouça só presunção e vaidade? Como fazê-la entender que há imensa gratidão, profundo carinho, reconhecimento desmedido ancorando-me ainda ali?
                           Horas depois outro filho a repetir a pergunta.
                           A este pouco dizer: “meta-se com a sua vida porque da minha cuido eu.”
                           Por fim o mais sensato e equilibrado: “pai, eu queria conversar com o senhor. Eu nunca me meti em sua vida, nunca dei opinião... Eu respeito muito o senhor...”
                           Hesita, hesita... Procurando palavras.
                           “Vai direto ao assunto, rapaz, o que é que está pegando?”
                           “Essa mulher, pai. Eu nunca me preocupei com as suas aventuras e até sacaneava.
                           A C. era mais nova que eu e eu a chamava de mamãe, só prá sacanear, achando engraçado, mas agora é sério, meu pai, você está mudado.
                           Agora não é só mais uma comidinha não, pai, vai dar merda.
                           Escuta o que estou dizendo, pai: vai dar merda!
                           Ou o senhor se separa da minha mãe e assume essa mulher ou dispensa a mulher.
                           O senhor não vai ser o primeiro do mundo e a gente vai ter que entender isso, o senhor vai continuar sendo o nosso pai.
                           O senhor só não vai é conseguir ficar com as duas. Minha mãe está cabreira, desconfiada... Dá um jeito nisso, acaba com essa situação, pai.
                           Vai por mim...”
                           Ainda não sei, mas vou lastimar pelo resto dos meus dias esse dia, a oportunidade perdida, o momento exato em que a solução surgiu, sugerida por meus próprios filhos, e não percebi.

Hoje temos um encontro. Será próximo a uma praia, e passearemos pelo píer, conversando, fazendo planos de felicidade incontida para sempre, os dois sem acreditar no que falam porque nas algemas de compromissos familiares, mulher e marido pressionando cada vez mais, sufocando, encurralando, analisando cada gesto e intenção.
                           O passeio terminará em um banquinho espremido entre a secular igrejinha, uma das primeiras construídas pelos colonizadores, não os de agora ou os que os antecederam, mas os primeiros, os portugueses e seus bacamartes de extirpar índios, as caravelas lotadas de riquezas levadas, os nossos irmãos ibéricos, e o mar, o vasto mar, do tamanho do que me inunda e transborda.
                           Marcamos às nove, nove da manhã. Hoje é feriado escolar.
                           Nove e cinco, nove e dez.
                           Por que se atrasam as mulheres, sempre com justificativas injustificáveis para nós, homens plantados na espera, impaciência e irritação amenizadas quando chegam disfarçadas em seus cosméticos e olhares de desculpe-me?
                           Nove e vinte.
                           Não é possível que tenha trocado de lugar ou de hora, a tonta. Será que entendeu nove e meia? É aguardar.
                           Nove e vinte e cinco, nove e meia, nove e quarenta...
                           Nove e meia é hora quebrada, deve ter entendido dez, a impaciência virando raiva, a raiva virando apreensão: será que aconteceu alguma coisa errada?
                           Dez horas, dez e cinco...
                           Não entendeu errada a hora, foi o local, entendeu errado o local, só pode ser.
                           Se a estou esperando até agora, ela deve estar em algum canto me esperando também. É procurar pelo bairro, a cabeça selecionando os locais mais prováveis, percorridos um a um, e ela em nenhum.
                           Agora é percorrer os improváveis, e ela não estará em nenhum deles.
                           E se já chegou lá onde eu estava? Eu não deveria ter saído de lá.
                           Dez e quarenta.

Existe uma sensação inexplicável para os incrédulos, improvável para a ciência e falsa para os céticos, a que põe em contato dois que se amam.
                           É a mãe que a quilômetros sente o filho em perigo, o filho que em saudade repentina e inexplicável visita a mãe e a encontra enferma, o traído que sem evidências intui e passa a procurar, até encontrar.
                           Isso. E é isso o que sinto agora, a sensação do que vai à cirurgia para amputação, sentindo-se mutilado por antecipação.
                           Alguma coisa deu errada e ela está em apuros, sendo ofendida, talvez agredida fisicamente ou, pior, já memória absoluta tateando o corpo, buscando-o nos caminhos do nunca mais.
                           E saio andando, perdido de mim mesmo, sentindo a nuca latejar, o peito em palpitações sem ritmo, meio tonto.
                           Estou agora no píer e a visão se turva, reduzindo-se a pontos de luz boiando, reflexos do sol no mar.
                           As palmeiras tornaram-se manchas escuras e preocupam-me as pessoas. Daqui a pouco pensarão que estou bêbedo, provavelmente drogado, inocentes de que talvez eu esteja morrendo.
                           Decido ir à casa dela, e pouco importa o marido, se discutiremos, trocaremos impropérios, socos ou talvez nos apartemos em caminhos opostos, à delegacia, ao necrotério.
                           Preciso vê-la, atestar com os meus próprios olhos que está intacta, incólume, o encontro de hoje só adiado.
                           Sento-me na pedra, um tanto refeito, e agora o que me nubla os olhos são as lágrimas.

IX


Como dizer adeus a um braço se, siameses, nasceram juntos e juntos complementam-se, como se um só? Como dizer a uma das pernas “vá”, se sozinha estará impossibilitada de prosseguir? Como abrir mão de um órgão sem impor aos outros a falência de todo o organismo?
                           Não tenho como sair, mas tenho que sair.
                           Eu a descobri irmã, alma gêmea, metade da laranja, qualquer lugar comum para descrever alguém de presença visceral, mais que necessária, mas assexuada, de encantos anônimos aos meus olhos, como planta de floração infinitamente bela num deserto, atestando o belo para ninguém.
                           Amo-a de amor infinito, o mesmo nascido longe, na adolescência; adolescido na fase adulta, e agora... Quando se pensa adulto na velhice, modifica-se.
                           Pela primeira vez na vida eu a estou traindo e o remorso da traição é o remorso de pai que mata filho por engano, purgando por dor que não procurou.
                           A educação, cristã, casamento é para sempre. O exemplo dos meus pais, guerra de armistícios ocasionais, mas até que a morte os separe, ou os alivie. As minhas críticas à minha irmã, na separação. A crítica ao meu filho, à minha filha, a todos os que se separaram, em cobrança permanente dentro de mim: você também?
                           Como vencer conceitos, preconceitos, pudores se me vejo agora com os sentimentos em delito? Como rasgar a cartilha pela qual soletrei sempre, e continuar impune, sem saber se já sei ler? Como me aventurar neste mar agitado abrindo mão do barco que me garantiu todos os portos pretendidos?
                           Mas tenho que ir, sob pena de tornar-me dois, antagônicos e inimigos, em duelo permanente no mais íntimo, sem pausa e sem descanso.
                          
“Te esperei por mais de duas horas, passei mal, quase enlouqueci...”
                           “Calma que vou te contar. Falei com o meu marido que ia fazer uns trabalhos na casa de uma amiga, ele disse que ia trabalhar e não foi, ficou escondido debaixo da escada.
                           Desci a rua e quando ia pegar o ônibus para te encontrar ele me pegou pelo braço: vai aonde? Me levou para casa e foi uma discussão danada, quase apanhei.”
                           “Temos que tomar uma decisão, a situação está cada vez mais complicada. Imagina a humilhação, o estado de espírito do cara, ficar escondido para dar o bote na mulher... Lá em casa a Jocasta na mesma situação, tentando pegar telefonemas seus na extensão...
                           A gente pode pagar um preço muito caro por isso. Daqui a pouco um dos dois comete uma loucura. Temos que tomar uma decisão, e não dá mais para demorar.”

X

O telefone tocou mais cedo hoje, ela, e relaxo, pronto ao costumeiro “sou eu. Você dormiu bem? Bom dia, amor”, mas desta vez as palavras surgem num borbotão, rápidas, atropeladas, quase gritadas, como as de um orador no microfone: “sou uma mulher livre, amor!”
                           “O quê?”
                           “Isso mesmo que você ouviu, o meu marido foi embora!”
                           “Por quê, meu Deus? O que foi que houve?
                           “Eu falei a verdade pra ele. Não escondi nada.”
                           “E ele, aceitou assim na boa, sem nenhuma reação?”
                           “É papo longo. Depois a gente conversa.”
                           Salvo o que estava digitado, tomo um café e acendo o cigarro, surpreendido pelo que é capaz a fragilidade apaixonada, e resolvo entrar em casa, sentar na rede e repassar o que ouvi, ordenar o caos estabelecido em mim, ver o que farei doravante.
                           “Que cara é essa? Você está com uma cara assustada... Quem telefonou?”
                           “Um colega da rádio, o fulano. Quer que eu grave umas músicas pra ele. Esses caras são engraçados, ligam pra pedir gravações, textos de comerciais, e não falam em dinheiro. Por onde passo é pra adotar gente...”, menti, Jocasta muito desconfiada.
                           “Você está mentindo, a sua cara está muito esquisita...”
                           “Iiiiiiiii! Você quando cisma com uma coisa... Deve ser porque estou inspirado, estou no meio de um poema.”
                           “Espero que sim. Eu te conheço, já deve estar aprontando alguma.”
                           Faço um muxoxo e vou à rede, meu oráculo, onde destilo crises existenciais, tentando domar o animal que insiste em cada um de nós, impondo os seus instintos sobre nossas razões.
                           Não é mais uma mulher comprometida. Rompeu a relação de muitos anos, desfez o lar, vulnerabilizou-se, criou argumentação para línguas desocupadas... Na maior e mais completa prova dos próprios sentimentos, confiante.
                           Não sei o que fazer, Jocasta calada, desconfiada, curvada sobre a vassoura, varrendo a sala.
                           Preciso varrer o que me sobra, arrumar o que me falta, faxinar essa minha vida que anda tão suja!
                           Não dá mais para insistir na tática da protelação, na estratégia de deixar que as coisas se arranjem por si mesmas, no se recusar sujeito e eixo e assistir a história rolando independente, sem intervenções e direcionamentos.
                           Seja qual for o final, cabe a mim conduzir. Para o êxito ou para o fracasso.
                           Amanhã vou recebê-la na escola com o sorriso aliviado do que não cobiça coisa alheia, não divide o que não lhe pertence, induzindo a erro justamente a quem mais deseja certa.
                           E como uma criança alheia à sensatez dos adultos, irei à sua casa, sem me importar se o marido pode retornar para pegar algum objeto esquecido, ou tentar reatar, sentindo-se lembrado ainda ali, e encontrar homem novo menos de vinte e quatro horas depois, na própria cama ainda quente do seu corpo, os seus odores em tudo, atestando que mal foi, quase presente ainda, já não existe, pronto a se impor ou se vingar, ultrajado, talvez provocando viaturas policiais e rabecões, com justiça, pela ótica masculina, pouco humanos os homens nas questões do sexo.
                           Os cães urinam sobre a urina dos seus competidores, impondo o próprio odor e o poder, os homens deitam os próprios corpos sobre os odores dos competidores, a diferença só na capacidade de mascarar as intenções em teorias pretensamente racionais.
                           E menos estarei atento à imagem dela, mal saiu um ontem e outro desfralda a bandeira da posse na sacada, na janela, atestando aqui mora uma leviana, uma fútil que troca casacos, calcinhas e maridos em todos os dias.
                           A nada disso estarei atento porque nem a mim mesmo desarvorado, preso nos palpos dos próprios sentimentos, onde mais não conta senão ela já parte de mim, agora inteira.
                           Conversarei com minha filha, “vocês não estão conseguindo mais esconder”, “até agora não ouvi nenhum comentário, nenhuma fofoca porque ninguém tem prova, mas que devem estar comentando, devem. São discretos porque não ousariam com o senhor, têm medo da represália, mas está ridículo isso”, “é questão de tempo minha mãe saber e você conhece a minha mãe”, “você está impondo a humilhação à minha mãe e mudando a sua própria imagem, está expondo a mulher que você diz gostar, isso não é certo, pai, você tem que dar uma solução, ninguém pode fazer nada, só o senhor”, “o melhor é ela parar de trabalhar na escola, a gente tem que demitir antes de um escândalo”.
                           Demiti-la? Sim, isso é decisão antiga e fato já consumado em minha cabeça, mas como?
                           Logo mais, como faço em todos os dias agora, irei a casa dela para suspirar o ar fresco do alívio.
                           Ela estará em pé, na pia, lavando louça, a carinha preocupada: “me ensina como escrevo uma carta de demissão, não vou continuar na escola”.
                           Surpreso, embora aliviado, questionarei: “o que é que houve?”
                           “Não dá mais para eu continuar lá. Não tenho mais como olhar as suas filhas, cruzar com a sua mulher. A intrusa lá sou eu, estou me sentindo mal. Não tenho o direito de afrontá-las assim. Inventa um motivo que vou botar na carta”...
                           “Não precisa escrever carta nenhuma. Eu vou demiti-la normalmente, vou dar todos os seus direitos. Não considere favor ou privilégio. Você não está saindo por incompetência, irresponsabilidade ou corte na folha de pagamentos. Não tivéssemos nos apaixonado e você continuaria lá, não pode ser punida por causa dos sentimentos. Vou demiti-la normalmente.”
                           E assim será.

XI

Agora alterno a minha casa e a casa dela.
                           Melhor dizendo: agora alterno a casa dela e a casa de Jocasta, que já não é a minha, biblioteca, discoteca, atelier, escritório, estúdio de som, salão de festas...    
                           Todos os motivos de orgulho e ocupação atestando uma vida inteira de luta, começada lá na feira, já sem valor porque belo corpo sem alma, oásis sem água, praia sem sol.
                           Em uma noite colchão ortopédico em cama enorme, suíte de vinte e quatro metros quadrados, ar condicionado e iluminação graduável, para leitura ou penumbra.
                           Na outra um lençol sobre o chão da sala, sob telhas vãs, sem televisor e sem som.
                           Em um dia livros, discos, telefonemas, correspondência, compromissos, iniciativas urgentes, decisões inadiáveis porque aos olhos alheios homem bem sucedido apontando caminhos, fazendo-se sombra para melhor abrigar.
                           No outro a ociosidade mãe dos sonhos, o menino enamorado sem saber que caminho tomar, na sombra do que sente, sem liderança e liderados.
                           Num dia a voz solta e imperativa, no outro o sussurro de olhar doce-melado espargindo o melhor de mim mesmo, e que só encontrava quando só, e agora, pela primeira vez, partilho.
                           E se me descubro não mais que um menino é porque estou no espelho ou diante do “senhor, bom dia”, “o que foi que o senhor falou?”, o senhor tantas vezes ouvido soando estranho como pássaro no aquário ou peixes na gaiola.
                           Não tenho passado e não sei se terei futuro porque o presente é tão intenso e inesperado que desaloja e subtrai tudo o mais.
                           No presente nasci e no presente vou morrer.

XII
Minhas mãos tornaram-se impotentes, desconectadas do cérebro.
                           Já não pinto nem desenho, caneta e teclado, qualquer ferramenta inúteis às minhas vontades alheias ao que me cerca, as mãos de conexões novas, ligadas ao peito ordenando carícias, os dias, as horas, cada minuto oferenda à consumação do momento, e o momento é dela, o momento é ela, calor, forma e cheiro me bastando porque tudo é isso.
                           Mas há Jocasta, há filhos, há netos, há funcionários, há documentos a serem analisados, espaços em branco esperando a minha assinatura.
                           Há ouvintes, correligionários, vizinhos, companheiros, irmãos, mãe me olhando, esperando.
                           Aguardam a minha voz, as minhas decisões, opiniões, aconselhamentos, presença, e sou um só, quase nenhum aguardando vozes, decisões, aconselhamentos, presenças.
                           Eu não era aquele, eu sou esse, sei agora, caminhando nos parques, bebendo do sol, aberto à brisa matinal, vendo o nunca visto me inebriando numa febre de criança no recreio.
                           Ah! Como foram pequenas as minhas vitórias!

“O que é que você falou pra ele?”
                           “A verdade: estou apaixonada por outro!”
                           “Você poderia ter feito de outra maneira, ter se afastado aos poucos... Foi uma temeridade o que você fez. Ele poderia tê-la matado, ter dado uma surra...”
                           “Chegou perto. Eu não poderia continuar nessa situação, sou mulher de um homem só, não estava conseguindo deitar o meu corpo em uma cama e a cabeça em outra, permitir carícias dele. Estava me dando nervoso, me fazendo mal... Dava remorso, eu achando que estava traindo você...”
                           “Ele falou, falou, te ameaçou e foi embora assim sem mais, sem cobrar nada?”
                           “Primeiro ele chorou igual à criança... Olha, nesses anos todos que vivi com ele eu nunca o vi chorar, nem quando a mãe dele morreu... Aí chamou o irmão que tem uma Kombi e pegou as coisas dele e levou...”
                           “Coitado... A gente está sendo muito cruel, muito mau, com ele e a Jocasta. Eu não queria isso, sinceramente... Pensei que quando soubesse fosse me procurar, tentar me dar porrada ou até me matar... Ele não te pressionou para saber quem era?”
                           “Ele falou que era você, logo de cara, mas eu disse que não, que era o vendedor de uma editora, que ele não conhecia. Foi fazer negócios na escola e conversamos, e me apaixonei. Mas ele não acreditou e começou a falar mal de você. Quando eu te defendi ele teve certeza.”
                           “Esse cara vai aprontar alguma comigo...”
                           “Vai não. Ele falou que se quisesse ele tem amigos para matar você, mas que ele não é homem disso... Disse até que se era pra eu ser feliz... Ele só é violento para brigar, é brigão, mas matar... Ele não é disso não... Depois propôs se tornar meu amante, que eu ficasse com você e ele...”
                           “Coitado. Esse cara gosta muito de você. O que você respondeu?”
                           “Que não, ora. Que eu nunca o havia traído e da mesma maneira não ia trair você, não consigo... E mesmo que eu fosse desonesta, leviana, que eu gostava tanto de você que a possibilidade disso é zero. Eu não conseguiria.”
                           De caráter o moço, tanto que nunca mais voltou a procurá-la, para qualquer tentativa de reatamento ou aventura. Nem a mim, para vingar-se.

Chove muito e estou na sala, sentado, lendo jornal, Jocasta dormindo, deitada na poltrona em frente à minha.
                           Interrompo a leitura e fico olhando seu rosto, um carinho enorme tomando conta de mim, e em flashes, sem que eu tenha tempo de analisar, sequer pensar, retornam imagens que assisti e, pouco valorizadas na ocasião, triviais, pesam agora: sentada diante de mim, um de cada lado da mesinha de centro, jogando buraco por falta de alternativas, a casa pequenina e pobre, sem rádio e sem televisor; de bermudas, resignada, toda suja, tirando a lama do chão, depois de uma das muitas inundações no bairro em que moramos; encolerizada pelo ciúme, muito séria, “eu tenho pena da sua mãe, ela vai chorar muito, ainda vou te matar”, comigo rindo da ameaça; deitada a meu lado, nua, cabeça sobre o meu braço, cansados do de a pouco, ela: “eu queria que você ficasse careca e barrigudo, e rouco, prá sempre”. Eu: “que maldade! Eu queria que você pesasse cento e vinte quilos e essa berruguinha no seu nariz crescesse até ficar do tamanho de uma bola de pingue-pongue”, seguindo-se gostosas risadas infantis, dos dois; revoltada, correndo atrás de mim com a vassoura na mão, para bater mesmo, xingando, depois que, distraída, na pia, levou uma baita palmada; cansada, suando em bicas, o rosto vermelho, enxada na mão, me ajudando a capinar o quintal; possessa, com os punhos fechados, ameaçando jogar água fervendo em meus ouvidos, quando eu estivesse dormindo, porque sujei a roupa com guache e ela acredita ser batom; abraçada comigo, nós dois chorando porque um filho decidiu morar com a avó; indignada contida por mim porque queria bater numa das filhas, e mais indignada ainda porque eu estava lhe fazendo cócegas, para distraí-la até que se acalmasse; desdobrando-se em carinhos e cuidados por causa de uma das minhas pneumonias, atenta aos remédios e de plantão ao lado da cama, quase nunca se afastando, como se eu estivesse internado e fosse hora de visitas, baratinada pensando que eu ia morrer...
                           Há ainda muito amor em mim. Assexuado, é certo, mas muito, muito e desmedido amor.
                           E me lembro de um poema escrito durante o nosso namoro, depois de brigarmos, uma ferramenta de reconquista que eu me esqueceria logo, mas que ela guardou para sempre, uma folhinha de caderno amarelada, já sem o cheiro da gotinha de perfume que pinguei:

TEU RETRATO

Hoje vi o teu retrato.
Sobre o papel aqueles mesmos traços
Que sem sentir tive nos braços.

Foi um instante roubado da realidade,
Um misto da farsa do tempo
E da exigüidade do momento.

Por instantes senti saudades,
Transportei-me à época perdida,
Na tua face escondida.

É, hoje vi o teu retrato.
Inconsciente, busquei o teu perfume
Nas mechas encaracoladas, no negrume
Que só o teu olhar podia inspirar.

Imaginei-te toda e o açoite piorou,
Novamente à saudade a minha vontade se curvou.

Analisei o teu queixo, depositário de beijos onde,
Não me queixo, deixei um pedaço da vida.

Pois hoje vi o teu retrato.
Estavas tão serena, com essa boca pequena
De onde fluía natural uma palavra amiga.

Vaguei, e do éclan mais profundo arranquei
Uma última lágrima que ainda teimava em ficar.

Hoje vi o teu retrato.
Sentindo-me um trapo entendi:
De todo um corpo quente,
De carne e osso,
Resta agora só esse pedaço
Em humildes três por quatro.

Esse pedaço de saudade,
Esse resto de sorriso
Esse retrato.

                           Como me separar, como dizer “vou embora, você não existe mais?”
                           É já parte de mim, porção do meu organismo.
                           Faço contas: um ano e meio de namoro, seis meses de noivado, trinta e cinco de casamento... Dois terços da minha vida ao lado dela.
                           Da feira à direção da nossa escola, juntos. Das peladas na esquina à direção do sindicato, juntos. Da meia água menor que uma quitinete, alugada, a esta casa de vinte e dois cômodos, juntos. Dos biscates e do artesanato a esse escorchante desconto de Imposto de Renda na fonte, juntos... Juntos, juntos sempre. Juntos tudo.
                           E não entendo os que se divorciam saindo de casa com a naturalidade de quem sai para comprar cigarros.
                           E choro e saio de perto.
                           Ela pode acordar e não terei como dizer porque choro.

XIII

                           Tenho que ir, não quero. Tenho que ficar, não quero, espremido em mim mesmo, entre a cruz e a cruz ou a espada e a espada porque já não atino na diferença entre a cruz e a espada, inclinando-me para os dois lados, em movimento pendular que mais desnorteia e entontece, o infiel que engana lá e cá, sem saberem que em mim não dói menos, que também sangro.
                           O amor que não tem pressa, espera, é o que se sabe correspondido.
                           O amor que se sabe só tem a urgência dos afogados debatendo-se aflitos.            E esses são os meus dias, consolar a espera e amenizar a aflição, não deixar que a espera canse ou a aflição exploda.
                           Agora só um sentimento me possui, a saudade.
                           Lá a saudade daqui, aqui a saudade de lá, esse sentimento de vazio e impotência diante do daqui a pouco.
                           Por muito pensei a saudade indefinível, uma experiência intransferível por palavras, até que ouvi o xará Buarque de Holanda: “saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu.”
                           Exato, e é isso o que sinto.

Agora caminho na praia, os pés escrevendo o meu peso na areia, olhos no horizonte azul, banhado de sol e brisa, os cabelos esvoaçando.
                           Não tenho mulher, amante, documentos a assinar, decisões a serem tomadas, atitudes a serem postergadas... Nem filhos, alunos, ouvintes, companheiros, parentes, vizinhos, patrões, carteira de identidade, título de eleitor, imagem a ser preservada, intenções, projetos, compromissos para logo mais... Nada que possa me tirar daqui.
                           Agora sou só eu, e como estou leve!
                           Não sinto o corpo, não sei se estou no cassino da senilidade, optando onde apostar, se na hipertensão, no câncer, na esclerose, Alzheimer, Parkinson... Ou no cassino da juventude, sem apostar nada, só espiando.
                           Gaivotas bordam no espaço com linhas invisíveis e borboletas amarelas tentam se passar por sol, as flores branquinhas da minha infância em floração temporã na restinga onde vou concluir a minha travessia, fugindo do continente onde me deixei.
                           Caminho para uma ilha onde o sol é sempre e os temporais, lenda dos que nunca beberam na poesia.
                           Esse sou eu, nu, despido de tudo o que me impuseram pensando me ajudar.
                           Já não carrego o fardo das leis, normas, premissas, postulados...
                           Fardo que nunca foi meu. Só tomei de empréstimo.
                           Não olho pra trás, pode ser que acenem, me chamem, ofereçam algemas, alianças, cordas, colarinhos, gravatas... E aí tudo de novo.
                           A restinga é longa, um areal enorme, ornada de espuma dos dois lados e penso que dificilmente chegarei ao fim.
                            A restinga que agora me conduz termina no nunca, lá perto do jamais.

XIV
                          
Acabou o deslumbramento que se faz obrigatório na chegada da pessoa amada, aquelas coisinhas tão bem poetizadas pelo poetinha*.
                           Agora é a minha mulher, como poderia ter sido outra qualquer das tantas que fizeram baldeação em meus braços, mas é a mulher que amo e quero; com roupa doméstica, palavras não escolhidas, atarefada com as coisas simples e cotidianas, como outra mulher qualquer, mas é a mulher que amo e quero.
                           Na casa dela tenho o estranho poder de não permitir que o mundo me acompanhe porta adentro, fazendo acampamento na poltrona da sala e na minha cabeceira.
                           Lá fico imune ao que me aporrinha e desgasta.
                           Lá não sou eu porque eu sou o que se mostra, reduzido a conceitos, opiniões, conselhos, posicionamentos... Todos os rótulos e embalagens que nos mascaram e reduzem a personagens nas cabeças alheias.
                           Lá me possuo, e surpreendido gosto do que tenho, a mim mesmo rendido aos meus sentimentos, como quando caminhava o meu corpo adolescente pelas ruas baldias no bairro em que morava.
                           E descubro que a poesia não é um estado de espírito, mas um modo de vida.

Mas há Jocasta, doce irmã encarcerada em minha memória, com quem posso passear ainda de mãos dadas por bosques encantados, e nos banharmos em lagoas cristalinas, corpos nus e sorrisos aleatórios, sem motivos justificáveis.
                           Juntos podemos ainda escolher o presente de um filho, fazer feira, ouvir discos, discutir a última cena da novela, sentarmo-nos à mesa para comer a tarde que se anuncia mansa e pacífica.
                           Juntos, voltarmos aos bailes, e nos acariciarmos em gratidão mútua pela existência um do outro.
                           Só não podemos as coisas do sexo porque agora irmãos, e o sexo é oração à divindade determinada me esperando.
                           Pudesse fazer o que faço nas salas de aula e passaria o apagador, reescrevendo outro texto, mas não posso.
                           O escrito está indelével, marcado a fogo, esculpido no aço.
                           E choro as lágrimas dos que querem sem querer, mais doendo porque sei que as dela são opostas, as dos que querem não querer, e dói muito, subtrai e reduz.

* N. E.: poetinha: como era chamado na intimidade o poeta Vinícius de Moraes.


XV

Aproxima-se o natal, hora de me fantasiar de consumidor e percorrer vitrines e bancadas, barracas e shoppings, à cata do sorriso mais bonito escondido, disfarçado de brinquedos, roupas, bibelôs... Qualquer coisa que me alimente o coração.
                           Há filhos, noras, genros, netos, Jocasta, e agora a morena e o filho dela.
                           Para evitar a costumeira ciumeira de sempre, cada um mais preocupado com o embrulho do outro que com o seu, em vã tentativa de saber a quem mais amo, encontro solução: um aparelho de DVD para cada um, filhos, Jocasta, minha irmã e a morena, irrelevando os que se acham melhores e rebaixando os que se sentem superiores.
                           E não se fala mais nisso!
                           Para as crianças... Ah! Para as crianças!
                           Não basta vasculhar cada uma delas à cata do presente ideal, menos lhes escrutinar os pensamentos e muito menos que as imagine brincando.
                           É preciso mais, que eu sonhe e me veja brincando com os brinquedos delas, com os brinquedos que não tive, não me deram, ainda que só em sonhos e sem queixas: antes tarde do que nunca!
                           Agora as crianças que não tive a oportunidade de fazer, mas que são minhas, porque do mundo, como eu.
                           Brinquedos mais baratos porque muitos, escondido.
                           Pode ser que em casa alguém se julgue prejudicado ou transformado em credor porque dividiu.
                           Finalmente o supermercado, aquela vontade louca de poupar tempo, chegar na gerência, sacar o cheque e ordenar “embrulha o mercado todo e põe no caminhão!”
                           Aí... Janeiro, mês de caçar papagaios e descascar pepinos.
                           É o mês da ressaca dos sorrisos.
                          
Natal. A árvore no centro da copa resplandece em mil tons, o som a toda, embrulhos espalhados em torno da árvore, a ceia com mais do triplo do que conseguiríamos comer, mas nada mascara a tristeza comum, de cada um e a mesma em todos, como se nos avisasse: é o último!
                           Fugindo do clima, cada um saca o seu presente, passa rapidamente pela mesa, mordisca rabanada e pernil, bebe alguma coisa e vai embora cuidar da vida, procurar a alegria na casa do sogro, da sogra, em qualquer canto do mundo menos triste que aqui.
                           Só Adônis permanece, sacrifício por solidariedade, comigo calado, responsabilizando-me pelo sofrimento imposto aos que amo, entre um verme e um rato, sentindo-me nada, aquele menino humilhado, envergonhado de si mesmo.
                           Vai embora, fico a sós com Jocasta: “vou sair, dar um giro por aí.”
                           Já esperava, limitando-se a “já vai procurar alguma vagabunda?”, o pronome indefinido colocado de modo estratégico.
                           Definindo-o provocaria uma explosão de cólera em mim, e isso é tudo o que não deseja. Estratégia feminina.
                           Chego à casa da morena, a minha Garça, e está tudo fechado, tudo apagado, sem nenhum vestígio de vida, o natal ausente ali também.
                           A mãe (mora no andar de baixo), avisada de que eu havia chegado, chega até mim e “eu pensei que você não viesse mais”.
                           Cumprimento-a, desejo feliz natal, como se hoje fosse natal e a felicidade existisse, pelo menos pra mim.
                           Pergunto pela filha: “está dormindo. Deu meia noite, ela me tomou a bênção e foi dormir, chorando como uma bezerra desmamada. Quer que eu acorde?”.
                           “Não, deixa ela”.
                           Difícil deixar de chorar diante da velha.
                           É a gota, e me lastimo covarde, incapaz de jogar o carro num poste, tomar veneno, pedir uma arma emprestada.
                           Se semeio sorrisos nasce uma planta raquítica e frágil; se semeio a desgraça crio uma floresta.
                           Que maldição é essa a que me impus, meu Deus!

Amanhã discutiremos e haverá amor bastante para que a frustração e a tristeza não impeçam um beijo.

XVI

A semana entre o natal e o ano novo é um calvário, os filhos me olhando com olhares acusadores, carregados de mágoas, pouco falando, os netos ressabiados, como se tivessem ouvido algo capaz de afastá-los de mim, pouco se aproximando, pronunciando o “bença vô” sem a convicção de antes.
                           Talvez não tenham ouvido nada, estão percebendo os pais, Jocasta cobrando dia e noite, a cada minuto, em todos os segundos, sem parar, e mágoa também na casa e no peito da morena.
                           Vivo de uma energia vital chamada angústia.
                           De angústia e pela angústia vivo, vazio para qualquer outro sentimento, sem ontem e sem amanhã.

Pela ótica da morena, se passei o natal com a família, o ano novo é com ela. Pela ótica da família, o meu lugar e junto deles, no natal, no ano novo e em todos os dias.
                           Pela minha ótica o meu lugar... Já não tenho lugar, vagando ao sabor dos momentos, como o lixo que cai do navio e se entrega às marés, o acaso decidindo se praia ou alto mar.
                           Navego sem bússola, entregue à previdência da quase insanidade, desatento a mim mesmo querendo administrar o impossível.
                           A vontade agora é tomar um ônibus e partir para onde não sei, com documentos falsificados e identidade clandestina, me empregar no emprego mais humilde, prá começar tudo de novo.
                           Vontade que só não levo à consumação porque não tenho o direito de impor esse sofrimento à minha mãe velhinha, acreditando que estou bem e feliz, arrecadando sorrisos para dispor na minha própria velhice.
                           E chega o último dia do ano, como se para mim houvesse diferença entre último e primeiro, qualquer um.
                           O mesmo clima do natal.
                           Quando me preparava para dar a mesma voltinha da semana anterior, Jocasta muito nervosa, nos limites da inconsciência: “se sair vai se arrepender. Vou cometer uma loucura, você não vai esquecer de hoje mais nunca. Você não me conhece”.
                           E por conhecê-la não saí.
                           Pensando que eu repetiria o natal, chegando depois, a morena me esperou até três e meia, sentada na sala, sozinha, diante da ceia.

Passo boa parte da noite e praticamente o dia seguinte pensando, deitado na rede.
                           Assomam-me todos os conceitos impostos na infância, os preconceitos adquiridos ao longo da vida, a lembrança de todos os momentos vividos em família, cada festa, cada parto, cada vitória, cada derrota... E decido ficar.
                           Preciso de um álibi para romper com a morena, na verdade romper comigo mesmo e exilar em definitivo qualquer possibilidade de felicidade.
                           Ano novo, vida nova. É retomar o trabalho, voltar pra rádio, dar muitas aulas, escrever, pintar, retomar as hortas, aumentar o número de animais... Preencher cada minuto, e se algum minuto sobrar que venha mais trabalho, não pode haver pausa para pensar.
                           Assim não terei tempo de lembrar que estou triste, tentando superar-me em tudo para alimentar a vaidade, filha bastarda e perdida, arremedo da mãe, a felicidade substituída.
                           Chego à casa dela e está muito nervosa, cobrando-me a ausência na noite anterior, lastimando-se, ameaçando me mandar embora, frustração e raiva pondo-se como os mais eficazes componentes dos desatinos.
                           Posso ficar calado, olhando, até que ela se digne a olhar pra mim, quando sorrirei, desarmando-a, e me aproximarei para repetir “boba, eu te amo”, impondo o armistício, mas hoje não.
                           Hoje concordo com tudo o que está falando, dando razão, inclusive quando diz que a nossa história acabou, não deveria nem ter começado, e o melhor é terminar.
                           Covarde, covarde é o que sou, traindo-a ao esconder as minhas vontades e os meus propósitos, e não gritar “eu te amo e nada, nada pode nos separar. O nosso encontro está escrito desde sempre”.
                           Covarde, muito covarde, traindo-me em não dizer “vim para ficar, o meu lugar é aqui, é em seus braços que quero morrer, e seu rosto a última imagem que quero levar. Você é parte de mim e não sei me habitar parcial. Vim para dizer que não vim visitar, estou aqui para ficar.”
                           Mas, ao invés, concordo, plantando safras de remorsos e frustração, empurrando pra ela a responsabilidade pelo rompimento.
                           E vou embora partido, deixando o meu melhor pedaço, o que só descobri quando me pensei incapaz de descobrir mais qualquer coisa.
                           Não é o adeus de depois de encontros, é adeus de sepultamento, profundo e definitivo.

XVI


Agora é o de sempre, o sorriso mascarando as lágrimas secas e silenciosas, as piadinhas e brincadeiras constantes, ininterruptas, para não ser flagrado em pranto, e a escrita, a pintura, o discurso, a superação para que me sinta vivo ainda, e a corrida ao sexo porque cada orgasmo uma viagem, o alheamento da realidade hostil e permanente passando pela janela.
                           Agora o absenteísmo, a interrupção, o começar para abandonar porque nada apraz nem se justifica senão como ocupação momentânea para manter a mente ocupada, longe de mim mesmo sentindo-me outro.
                           Eu não sou esse, eu sou o que viaja nas estrelas e cansado deita na lua, embalando-se numa sinfonia de sabiás e bem-te-vis.
                           Sou o que com as mãos arranca a seiva do chão e em preces a leva ao fruto mais fecundo, para que o dia acorde numa explosão de luz.
                           O que traz em si a chaga ungida do inconformismo, a cicatriz da rebeldia, o cansaço dos que se imaginam próximos do sono reparador, recheado com a imagem da mulher destinada, a que procuro em cada corpo feminino.
                           Sim, eu não sou esse. Sou o que nasceu para malbaratar a própria dor, espargir sonhos de difícil realização, edificar escombros do que já não cabe, por antigo e de uso dos que já morreram.
                           O que espia pela fresta do tempo e o que vê não pode ser dito porque longe do shopping e não anunciado na televisão; o que se sabe tosco, mambembe, mal acabado. Reduzido a puro instinto e sentimentos absolutos.
                           O que roga e só escuta o silêncio, o que pede em vão, o que morre um pouco em cada minuto.
                           O que mente quando diz que não é esse porque o outro é quem queria ser.

Passo a tarde quieto, calado, pensativo e imagino o que fará sem mim, e a ficha cai: tinha um marido, deixei-a só. Tinha um emprego, trocou por sentimentos. Tinha um estabelecimento comercial, encerrou as atividades para a dedicação integral, e agora amargura o recomeço a partir do nada, ou da saudade, para mais esvaziar.
                           Se o coração é covarde, prima pela omissão e peca pela fraqueza, a consciência permanece atenta.
                           Tenho filhas, irmãs, cunhadas, noras, netas, sobrinhas, mãe... E se fizessem isso com elas, arrancando-lhes o pão, a fome e os dentes?
                           Vou à casa dela.
                           Buzino e na janela surgem duas. Uma de semblante fechado, querendo mostrar contrariedade e resistência, e outra, com o brilho dos apaixonados no olhar.              Explico o que pensei e as minhas intenções: fazer compras que durem pelo menos três meses e mais uma quantia bastante para as despesas do dia a dia, do gás, da luz e do que mais precisar.
                           Em três meses deverá estar já reorganizada. Não estando, que me ligue, continuo amigo.
                           Tomo o café de sempre e marco para “amanhã às oito, venho te buscar de carro. Vamos ao supermercado.”
XVII
Buzino, desço do carro e já está pronta, arrumada, perfumada, o cabelo molhado, como se prestes a mais um encontro e não ao último, para me dar a mão e sairmos por aí ao acaso, para lugar nenhum, talvez para dentro de nós mesmos, em uma praia de pouco movimento, ao centro cultural, qualquer jardim ou esquina, porque seja onde for só cenário para conter o que foi romance, tornou-se drama e poderá vir a ser tragédia.
                           Entramos no carro e partimos ao supermercado.
                           Voltamos calados, em prematuro luto pela morte da nossa história, um silêncio sólido, compacto entre bolsas, e uma vontade imensa, enorme, sem medida no meu peito, a de gritar perdão, eu não quero, mas não pode ser de outra maneira.
                           E agora subir as escadas da casa dela, bolsa a bolsa, degrau a degrau, pela última vez, minhas digitais no corrimão, para sempre, ainda que ela muito lave porque impressas em mim.
                           Vamos colocando as bolsas no chão e a mãe dela chega, agora um pouco minha mãe também, tanto se esmerou na arte de agradar, e ficam conversando, lastimando a minha decisão em cochichos ininteligíveis, e é hora de ir-me embora.
                           Reclamo cansaço, bolsas pesadas, idas e vindas na escada... Mentira, pretexto para ficar um pouco mais, decorando cada forma e cor, cada detalhe de cada coisa, absorvendo cheiros para alimentar com dados a minha memória, daqui para frente em moto contínuo, sem fim e sem descanso.
                           Sento-me na poltrona, como Atlas, o peso de todo um planeta nas costas, acendo o cigarro e ela me pergunta se quero café, “vou fazer fresquinho”.
                           Não posso chorar. Ela viria me consolar, se aproximaria e fatalmente reiniciaríamos tudo de novo.
                           Tenho que me controlar.
                           E sou surpreendido pela voz de Jocasta: “onde é que o Francisco  está?”
                           Com uma calma que me surpreende, respondo “estou aqui”.
                           “O que é que você está fazendo?”
                           “Estou sentado na poltrona, não está vendo?”
                           Não é ironia nem deboche. É o cérebro entorpecido, anestesiado pela surpresa, incapaz de criar desculpas, mentiras, justificativas, limitando-se a responder o óbvio, como um robô, que só responde o que lhe diz os sentidos porque inconsciente, incapaz de raciocinar.
                           Fala ainda uma coisa ou outra que meu cérebro ou minha alma, não sei, se recusa a registrar, não lembro, ou só lembro dos lábios pronunciando o que esqueci, e culmina: “vamos para casa, o seu lugar é lá”
                           “Vá que daqui a pouco vou”, respondo.
                           E com a determinação com que subiu as escadas, desce, acompanhada de quem a trouxe.
                           “Chiii! E agora?”, a mãe da morena.
                           “Não sei, tenho que pensar”, respondo, “o que sei é que ela cometeu um erro tremendo. Agora muda tudo.”
                           Viro-me para a morena, pálida, estática, como se fora de si: “eu posso considerar isso uma briga de família, mas você não. Houve arrombamento do portão, invasão de domicílio, injúria, coação, constrangimento e danos morais. Você quer ir à delegacia? Eu a levo. Quer? Não se preocupe comigo.”
                           Ela faz que não com a cabeça, e arrancando palavras do mais fundo da tristeza e da humilhação balbucia: “deixa pra lá, é sua mulher e seu filho”, e chora.
                           E em mim não há raiva, não há ódio, nenhum sentimento transitivo, dirigido para fora de mim, só decepção, uma tristeza de velório de mãe, os pés faltando para continuar a caminhada.
                           Tenho que ir, voltar, mas não já.
                           Como afirmou o poeta*, “Se a sentença se anuncia bruta/A mão cega mais que depressa executa/Pois que senão o coração perdoa.”
                           Lavrei sentença, ela também, a hora é de execução.
                           Preciso sair por aí, recolher-me num canto e ruminar o acontecido. Buscar em mim erros, equívocos, dubiedade, contradições, vacilações, para justificá-la e municiar o meu perdão.
                           Nesse momento qualquer lugar do mundo, menos a minha casa.
                           Não há equilíbrio e posso me permitir à cegueira que só vi em mim duas vezes na vida, e não quero ver mais. O momento é de puxar as minhas próprias rédeas.
                           Preparo-me para ir. Direi que vou voltar. Não posso sair assim, este não pode ser o final da nossa história, não pode ser esta a última imagem que deixarei; no meu íntimo alguma coisa afirmando que a história continuará por todos os séculos dos séculos e além.
                           É fazer mais uma horinha, recobrar o equilíbrio e partir, mas sou desperto por buzina, a voz da sobrinha da morena no portão: “Francisco, o seu filho está chamando”.

* N. E.: Fernando Pessoa, poeta português.

XVIII


Um fio de esperança: veio amenizar o dito, contornar o feito, trazer a tranqüilidade à família, retratar-se pelos crimes cometidos a pouco, mas não.
                           Abre o porta-malas e lá estão os meus pertences, minha roupa e meus sapatos, ficando clara a minha situação, despejado.
                           Um dia, quando eu estiver só, nomeando cães, cabra e galinhas com nomes de gente, chamando-os de filhos, para fingir a mim mesmo que não estou só, diante do teclado e do monitor, inventariando o que calei e me recusei a dividir com qualquer confidente, relutarei muito em não redigir o ouvido, e contar do muito esforço feito para não me cegar pela terceira vez, de cegueira maior que as anteriores, e matar.
                           Optei por assumir uma covardia que não é minha, e envergonhado fui ao fundo de mim mesmo buscar forças para sustentá-la.

Agora estou sentado na poltrona novamente, mastigando tristeza, humilhação, vergonha... Em esforço supremo para transformá-las em resignação.
                           A mãe da morena aproxima-se de mim, passa a mão em minha cabeça, desce até o rosto, e virando-se para a filha lança sentença partida de dentro, coisa de mãe, talvez de maneira inesperada até para ela mesma: “agora você tem a obrigação moral de cuidar dele até ele ficar velhinho, até ele morrer. Ele é sozinho agora”, o “ele é sozinho agora” reverberando em minha cabeça, fazendo eco em cada célula do meu ser, subindo à consciência absoluta.
                           Muito séria, embebida em humilhada convicção, ela responde: “esse homem não vai mais se livrar de mim, mamãe!”
                           E vai ao guarda-roupa, reorganizá-lo, para que nele caibam as minhas roupas.
                           Se a literatura espírita retrata a verdade é nela que vou me buscar para me definir: sou agora um andrajo, um espectro vagando no umbral da humilhação, com a sensação de que esta condição vai perdurar pela eternidade.

Três dias depois o telefone toca, a morena atende: “quero falar com o Francisco!”
                    “Francisco, a Jocasta no telefone, quer falar com você.”
                           Atendo: “nós precisamos conversar, temos coisas a resolver. Você está dormindo com essa mulher?”
                           “O que é que você acha, que sou hóspede aqui? Claro que sim, Jocasta, mas que pergunta mais absurda!”
                           “A gente precisa conversar.”
                           “Está bem, só não vai ser na escola. O seu filho pode tentar repetir o que fez aqui no portão e já estou refeito, não da separação, mas do que ele fez. Se tentar repetir não conseguirá chegar na metade.”
                           “Eu não duvido!”
                           “Mas não duvide mesmo! Vamos almoçar juntos, comer aquela caldeirada que você gosta. Amanhã pego você na porta da escola.”
                           Falo à morena que vou encontrar Jocasta, para conversarmos e tenho que administrar o ciúme e a insegurança, disfarçados, mas prontos para explodirem.

XIX

Chego um pouco antes da hora marcada e vejo esperança nos meus filhos, risonhos, principalmente Adônis, mais que torcendo, acreditando que vamos nos acertar.
                           Sinto remorsos. Não há a menor possibilidade, estou decidido.
                           Meu nervoso é tanto que tenho medo de dirigir, só tocando no acelerador, pronto para parar ao menor sinal de estar sentindo alguma coisa, ameaçando passar mal (nervoso demais a minha pressão cai, e fico lerdo como um bêbado, com os instintos e os reflexos diminuídos, seguindo-se dor de cabeça insuportável, prenúncio de mais um surto da cruel enxaqueca, pronta para se hospedar por uma semana).
                           Ela procura se eximir, jogando toda a culpa no acompanhante, afirmando que não sabia para onde estava sendo levada, e acredito. É vaidosa, não faria o que fez com roupa de andar em casa e de sandálias havaianas. Se arrumaria primeiro.
                           Alega que não fez escândalo, falou direito e baixo, o que é verdade.
                           Mais alega, que não mandou as minhas roupas. Foram tomadas à revelia, inclusive contra a vontade dela.
                           Pergunta o que “essa mulher tem que eu não tinha”, e continuo sendo sincero: nada.
                           Percebo para onde ela encaminha a conversa e me antecipo: “sexualmente você não deve nada a ela. Você é muito mulher, é questão de sentimentos. Eu te amo tanto quanto amava, quanto sempre amei, mas é diferente, é amor de irmão, de amigo... Não depende de mim mudar isso. Se dependesse eu mudaria, tenha a certeza.”
                           Chegamos e nos sentamos à mesa, ela diz que não quer comer.
                           Só agora percebo, está abatida, vem se alimentando mal. Faço chantagem: “estou com uma vontade miserável de emburacar numa caldeirada, mas se você não comer também não comerei”.
                           Ela resolve comer e come bem.
                           Entre o almoço e a sobremesa, pudim de leite condensado e cocada cremosa, pergunta: “você está apaixonado por essa mulher, não é?”
                           Não respondo, limitando-me a olhá-la.
                           Ela insiste, acrescentando “pode falar, não vou me zangar”.
                           “Não sei. Só o tempo vai dizer. Hoje a atração é muito grande”, menti, diante da certeza dos meus sentimentos.
                           “Então não há nenhuma chance pra gente?”
                           “Chance de quê, Jocasta?”
                           “Da gente reatar.”
                           “Com a pessoa, o ser humano, a mãe dos meus filhos, a amigona, companheiraça não há o que reatar porque nada foi rompido, continua tudo igual. Mas a mulher... Eu não consigo mais te ver como mulher, Jocasta. Você agora é minha irmã, entenda isso.”
                           “Eu não vou conseguir viver sem você!”
                           “Deixa de ser boba. A pior dor é a da mãe que perde um filho, e ela sobrevive, prá criar os outros. Daqui a pouco você está de namorado novo, capaz de achar até melhor que eu. Isso passa.”
                           Pela primeira vez ela sorri, um sorriso triste.
                           Peço a conta, pago e o retorno é uma tortura, a estrada sem acabar nunca, ela do meu lado, ora chorando, ora anunciando os planos futuros: fazer curso de informática, retomar os estudos, ir para a Universidade.
                           “Conte comigo. Eu falei que agora sou seu irmão. Não acredite, pague para ver, me dê a chance de mostrar.”

XX
                          
Sexta-feira, dia de “Love’s Light”, abro o programa e logo na primeira música, Daniela Mercury, “À Primeira Vista”, o segundo telefonema da noite, Jocasta:
                           “Oi! Sou eu”
                           “Não diga! Como é difícil reconhecer a sua voz!”, brinco, “o que é que você manda?”
                           “Bota ‘Planeta Sonho’, do 14-Bis. Diz que é um oferecimento meu pra você. Quero ver você apanhar.” (ela ri)
                           “Falôôôôuuu!”
                           Desliga e fico animado, ela está se conformando, penso, e começo a procurar o disco, todo enrolado, o telefone interrompendo a toda hora, comigo anotando recados e títulos de músicas.
                           Faz muito calor e os quiosques nas praias estão todos ligados no programa, como já é costume, os namorados nos orelhões ou usando celulares, bebericando e escutando músicas, pedindo e oferecendo canções, comigo falando baboseiras românticas entre uma e outra seqüências.
                           Continuo procurando, diachos, tenho certeza que trouxe o 14-Bis, onde coloquei?
                           Encontro, mas a música selecionada pra hoje é “Todo Azul do Mar”. Não trouxe “Planeta Sonho”.
                           Justifico no microfone: “recebi um telefonema muito gostoso da Dona Jocasta, mãe dos meus filhos. Ela quer ouvir e me ofereceu – Obrigadão, Dona Jocasta – a música “Planeta Sonho”, do 14-Bis, só que eu não trouxe. A música que vou tocar é outra, mas palavra de escoteiro que amanhã eu toco”.
                           Imediatamente o telefone: “por que essa discriminação comigo? Você não toca porque não quer. E que conversa é essa de me chamar de dona?...”
                           “Eu sempre te tratei por dona, no microfone, porque isso agora?”
                           “E não é mãe dos meus filhos não, é minha esposa”
                           E bate o telefone.

Noite seguinte, sábado, uma vontade louca de programar tudo de uma vez só, o programa inteiro, passar para o computador e ir para casa dormir, deixar que pensem que estou na rádio (antes eu enganaria que o telefone está avariado, sem dar linha, lógico. Desconfiai das rádios com telefones defeituosos. O locutor faltou ou está dando volta na patroa, deduro mesmo!).
                           Ameaça de chuva, quiosques vazios, biroscas vazias, bares vazios, todo mundo em casa, com os rádios desligados porque a novela acaba na semana que vem, está nos seus momentos finais, no epílogo, a Globo fazendo um estrago na audiência alheia, inclusive nas emissoras de rádio, o meu IBOPE só de traço, de poucos telefonemas para me ocupar, sem dar a sensação que o programa de quatro horas só durou duas.
                           Mas há que se manter a prosa e o profissionalismo, seja o que Deus quiser, e abro o programa. Vou levar no muque, ao vivo, sem gravar.
                           O telefone. Tomara que seja o primeiro de muitos, penso: “Programa Love’s Light. Boa noite. Com quem estou falando?”
                           Jocasta: “Oi, tudo bem?”
                           “Médio. Esse tempo e a porra da novela... Hoje vou ter IBOPE de... (vou poupar o colega) Se eu continuar assim mais tarde vou inventar que estou passando mal. Vou jogar no piloto automático e vou pra casa.”
                           “Pressa de ir pra casa?”
                           “Deixa de ser boba. É que estou sem saco mesmo. A sensação é de que a audiência vai ser uma merda, aí tira o tesão, a vontade de trabalhar.”
                           “Trouxe a minha música?”
                           “Claro. A que horas você quer que eu a coloque?”
                           “Você é quem sabe. Quero escutar de surpresa. Tchau!”
                           Desliga.
                           Os telefonemas a longos intervalos, hiatos intermináveis ocupados pelo desânimo (o telefone é retrato da audiência, num determinado momento, e atestado de aceitação e desempenho do locutor, do programador. Se não tocar transforma quem está trabalhando em mais um ouvinte).
                           Terminado o terceiro ou quarto intervalo, já quase nove horas, o telefone: “Programa Love’s Light. Boa noite! Com quem estou falando?”
                           “Sou eu, amor. Você está com a voz triste, já deixou uma música trepar na outra... O que é que está acontecendo?”
                           “Não estou triste não. Estou desanimado. A audiência está uma merda. Já começou a novela?”
                           “Não. Vai começar agora. Está acabando o Jornal Nacional. Você...”
                           “Peraí que vou trocar a música...”
                           Solto Ivete Sangalo, “A Lua que te dei”.
                           “Pronto. Fala, garotinha.”
                           “Essa música é linda. Eu também não estou legal. Cada vez que toca uma música antiga eu fico imaginando como era a sua vida com a Jocasta, me culpando, me sentindo mal. Estou com um remorso...”
                           “Desliga o rádio, garotinha. Vai ver a novela, depois vai dormir e pára com esses pensamentos. Foi acima das nossas vontades, você não tem culpa. Já estou pra baixo e você ainda vem com esses papos... Vai dormir que daqui a pouco estou em casa!”
                           Desligo, mas é tarde: a partir de agora todo o resto do programa, mais da metade, será a trilha sonora da minha vida com Jocasta, cada canção uma punhalada, uma hemorragia de remorsos e saudades, não necessariamente dela, mas dos momentos junto dela, quando eu conseguia sorrir e acreditava que a felicidade é possível.
                           Quase dez horas, entra “Planeta Sonho”, 14-Bis.
                           Mal a música termina, o telefone, fácil adivinhar: “Lembrou de mim, viu? Obrigado.”
                           “Como eu vou esquecer de você? Isso é impossível. Passei mais tempo ao seu lado que com minha mãe, temos quatro filhos, tudo o que conseguimos foi juntos. Não existe amnésia tão poderosa!... Eu nunca vou esquecer você.”
                           Desliga sem se despedir, acredito que para evitar que eu a percebesse chorando.
                           Agora quem quer chorar sou eu. Não posso, o microfone.

XXI

                           Confio na morena e em nenhum momento me percebo pensando-a pensando no marido, como se ela nunca tivesse tido um marido, mas a recíproca não é verdadeira, comigo sendo analisado o tempo todo, tendo que me policiar o tempo todo, medir palavras, antecipar o raciocínio dela com cara de preocupação quando me ponho pensativo.
                           Jocasta liga. Quer conversar comigo. Tem que ser na escola porque o assunto é a escola.
                           Chego, entro e a escola já não me diz nada, como se de visita em estabelecimento de colega concorrente.
                           Entramos em meu ex-gabinete, agora dela, e vai direto ao assunto: “quero saber como é que fica a situação da escola, do nosso patrimônio”.
                           “Como está”, respondo. “Você vai tocar a escola com as crianças (nossos filhos), e no que vocês fizerem não vou me meter, é problema de vocês, e continuo vivendo do aluguel do Estado.” (o prédio onde funciona a escola, de manhã, é alugado para a Secretaria de Educação, à tarde e à noite).
                           “E a casa, os terrenos, o carro, o sítio?”
                           “Não quero nada, já falei. Fica tudo como está.”
                           “Você está com família nova, vai dar confusão.”
                           “Confusão nenhuma. A lei é bastante clara: o cônjuge só tem direito sobre os bens constituídos ou adquiridos durante a vigência da relação, do casamento. Tudo o que temos foi conseguido antes de eu me separar de você. A minha mulher não tem direito a nada, ainda que eu venha a me casar com ela ou que ela ganhe o status jurídico de cônjuge, pelo tempo de convivência. Pode ficar tranqüila. Somos casados com comunhão universal de bens. Eu não posso dispor de nada sem a sua assinatura. Fica fria. Porra, Jocasta, você conviveu comigo por quase quarenta anos e não me conheceu? Você acha mesmo que sou capaz de fazer uma sacanagem com você ou com os meninos?”
                           “A sua cabeça está mudada!”
                           “A cabeça não, o coração. O caráter é o mesmo, me admiro você pensar isso!”
                           “E se essa mulher embarrigar? Ela é nova.”
                           “Pra você não muda nada. Você tem metade do patrimônio e tenho a outra metade. Um filho meu não tem nada a ver com a sua parte, só com a minha.”
                           “Como assim?”
                           “Vamos imaginar que eu já tenha esse filho: você morre hoje. O meu filho não tem direito a nada. A sua metade será dividida igualitariamente entre mim, que sou seu herdeiro também, e cada um dos nossos quatro filhos.
                           Agora imagine o contrário, que eu é que morra hoje: a sua metade está garantida, não será tocada. Como você também é a minha herdeira, a minha metade será dividida em seis, igualitariamente: você e cada um dos meus cinco filhos.
                           A genética e o amor de pai não reconhecem papéis de cartórios. É meu filho também.”
                           “E como é que eu vou tocar a escola sozinha?”
                           “Vamos ao cartório e passo uma procuração a você, com amplos poderes, menos o de vender ou encerrar as atividades da empresa. Se aparecer algum pepino que vocês não possam ou não saibam dar conta eu chego junto. Você tem quatro filhos adultos que estão do seu lado, esqueceu? Dois deles já ganharam experiência de administração escolar. Não vejo motivo pra essa insegurança, além do que o nome da Esmirna consta no Contrato Social, ela pode me substituir juridicamente, representar a empresa.”
                           “Você foi rápido, já consultou advogado.”
                           “Prá saber disso precisa consultar advogado? Você sabe que não consulto advogado. Consulto livros e redijo as minhas próprias petições, você foi sempre testemunha disso.
                           Me diz uma coisa: qual é o abutre que está metendo merda em sua cabeça?
                           “Ninguém, é coisa da minha cabeça mesmo.”
                           Assunto encerrado, muita matéria para preencher as minhas próximas tardes.

Abomino os mercenários, os que têm os corações nos bolsos e as que gozam com taxímetro na mesinha de cabeceira, computando a tarifa.
                           Abjetos os que avaliam sentimentos em cifras e apóiam os sentimentos nos interesses materiais mais imediatos e mesquinhos, os que acariciam com as cabeças nos bancos e cartórios, adormecem sobre cédulas.
                           Imundos os que trafegam na materialidade e na materialidade se esgotam, porque não mais que matéria pútrida a empestiar o transitório, o supérfluo, o que ficará.
                           Abomináveis os de olho no do próximo, a auto punirem-se porque, preocupados com o que brota na horta alheia, não reservam tempo para edificar a própria horta.
                           Os generais estão quase todos mortos, na inglória morte de velhice, para quem se pretendeu guerreiro.
                           Os que aguardam a morte ainda, assistem-se de pijamas ao invés de farda, atestado de quanto é efêmero o poder.
                           A capacidade de torturar e matar de ontem é agora um fraldão todo cagado, a tosse, as hemorróidas, uma colher de mingau dada por alguém que acreditou inferior e agora desfralda vitalidade diante dele decrépito e quase anônimo como os cadáveres que fabricou.
                           Vi a anistia, vi a abertura, vi o parto da democracia e infantilmente me acreditei incólume e fora de perigo.
                           Como eu estava enganado!
                           Não me mataram porque me sabiam próprio para castigo mais duro: foram-se, mas diante dos meus olhos deixaram as sementes do que ambicionaram, pretenderam e impuseram, e que agora assisto vicejando em todo o esplendor, nos shoppings, calçadões e tribunais, dentro de cada uma de nossas próprias casas, uma gente personalista e fria, com as almas encarceradas em cofres, pequenos generais.
                           Ok! Vocês venceram, admito.
                           E se há um inferno, que lá estejam todos os que fizeram da existência um ato contábil.
                           Eu os execro com todas as forças de minh’alma.

                           Provavelmente um desses alçou-se conselheiro de Jocasta, sorrateiramente aproveitando-se da fragilidade momentânea, que acredito temporária, ela logo estará a prover os dias com as suas gostosas e francas risadas.
                           Mas quem será? Qual filho, mais de um, talvez todos?
                           Me recuso a caminhar nesse sentido. Isso é admitir que nunca fui pai, os meus conselhos e exemplos contando no folclore de um sujeito estranho, talvez engraçado, exótico, pouco ou nada levado em consideração, e isto é a falência de um homem.
                           O irmão, a quem todos disseram com o coração no bolso, a quem defendi, sobrepondo-me à acusação, e agora vem me mostrar, não com palavras, mas em ato extremo, que o único errado era eu?
                           Um advogado que longe de corações e mentes ora pelas frias letras da lei?
                           Um amigo, uma amiga?
                           Certamente alguém que não me conhece, e então enveredo por outro caminho: não quer dividir nada, não quer mexer em nada, fica tudo no zero a zero porque está de bom tamanho.
                           Como sabe que nada fiz pra mim, pra nós, cada pequena conquista emoldurada nas mesmas afirmações: “para os nossos filhos”, “para os nossos netos”, “para a geração seguinte”, “para testemunho de que passamos por aqui”... Ameaça dividir, detonar tudo como pressão, chantagem.
                           Só pode, o meu coração aliviado, não há mesquinhos nem ninguém perdeu a confiança em mim, é só pressão de uma mulher apaixonada.

XXII

Agora acredito em tudo sob controle novamente, já posso voltar a sorrir outra vez.
                           Se Jocasta está preocupada com o material é porque o sentimental decresceu, tornou-se administrável por ela, mal sabendo que não havia mudado nada, a preocupação material não é por substituição, mas um flagelo a mais, imposto de fora, pelos conselheiros que não partilham nem as camas, dividem-nas.
                          
Vou comprar cigarros e quando volto encontro a morena no telefone, calada, o rosto contraído, limitando-se a sins e nãos com a cabeça, ocasionalmente tentando falar alguma coisa, mas sendo imediatamente interrompida.
                           Tomo-me de fúria e ciúmes, deve ser o ex-marido ou amigo comum, dela e do ex-marido, por isso pouco está falando, a mais de cinco minutos dependurada nesta merda.
                           Franzo a testa, fecho a cara e pergunto baixinho “quem é?”.
                           Séria como estava, põe a palma da mão sobre o fone, e também baixinho responde: “Jocasta”.
                           Ouve por mais uns dois ou três minutos, e começa a falar, sem dar tempo à Jocasta, exatamente como ela vinha fazendo do outro lado: “eu não tenho poder sobre o Francisco, ele é um homem livre e independente, você melhor do que ninguém sabe. Eu não pedi pra ele ficar aqui e também não vou mandá-lo embora. Isso é assunto de vocês, senta e conversa com ele. Se ele quiser voltar o que é que eu posso fazer? Vou sofrer muito, mas é a vida. Você está cobrando de mim uma coisa que não depende de mim, eu não posso fazer nada. Eu não mando nele, Jocasta. Se você quer saber nem namorando a gente estava mais, ele estava voltando pra casa. Voltando não, que ele não tinha nem saído de casa, vocês é que botaram ele aqui. Eu nunca pedi a ele que se separasse...”
                           Pára de falar, ouve Jocasta, e pela primeira vez faz cara de raiva: “fui criada sem pai, trabalho desde menina, nunca precisei de homem e também tenho patrimônio para herdar, pode tirar isso da sua cabeça. Agora com licença que estou com a panela no fogo”.
                           Entendo imediatamente a acusação do outro lado.
                           Ouve ainda por um dez ou quinze segundos e desliga.
                           Vai para a cozinha ver a panela e me sento na poltrona, impotente para qualquer raciocínio. Carrego toneladas sobre as costas.
                           Chamo-a e se senta em frente a mim.
                           “Primeiro, obrigado pela paciência, pela tolerância... Te meti numa furada, não é?”
                           Ela faz que não com a cabeça.
                           “Ela te ofendeu, te xingou?”
                           “Não, foi até muito educada. Em nenhum momento alteou a voz, mas deu pra perceber que estava se controlando muito pra não explodir.”
                           “E o que foi que ela falou?”
                           “Deixa pra lá!”
                           “Deixa pra lá não. O que foi que ela falou?”
                           “Não adianta porque você nunca vai saber. Só me irritei quando ela falou que eu estava dando golpe. Que fortuna é essa que você tem e me esconde?”
                           Não sei, nunca saberei o dito por Jocasta.
                           Às vezes penso porque foi muito humilhante e, sabedor, eu mudaria o tratamento com ela. Talvez muito desrespeitoso, e eu fosse tomar satisfações. Ou triste o bastante para aumentar a minha depressão. Quem sabe até se Jocasta não descobriu alguma coisa do passado da morena, capaz de mudar a sua imagem, e foi melhor calar?
                           Não sei, e acho que vou morrer sem saber.

                          
XXIII

Novo telefonema. Quer conversar comigo novamente, na escola, amanhã. Irei.
                           Logo que entro no gabinete, me estica uma folha de papel e mal posso acreditar no que leio:
                           “Você enlouqueceu? Sabe porque você assinou essa procuração? Para eu representá-la junto à Secretaria de Educação, por causa do aluguel do prédio, e você cassou a procuração.
                           Como o Estado não negocia com dois, só com um, você inviabilizou qualquer negociação. Eles pagam se quiserem, quando quiserem e quanto quiserem.
                           Eu nem me lembrava mais dessa porra! Sou tão desonesto que entreguei o original no Estado e a cópia a você. Não tenho nenhuma cópia.
                           Alguém te levou a um advogado, posso até imaginar quem,  e um dia vou cobrar isso a ele, e o doutor fez um dramalhão, que com esse documento eu podia isso e aquilo... E todo mundo concluiu que sou um bandido devorador.
                           Mulher, eu comecei camelô, toquei foda-se para empregos públicos, toquei foda-se pras aulas na faculdade. Tinha um salário que vocês não vão ter nunca, e toco foda-se pra essa escola também, mulher. Eu me garanto, não precisei começar de onde o meu pai acabou não. Comecei do zero. É disso que está todo mundo com medo, de ter que trabalhar?
                           Vou lhe fazer um desafio já sabendo que você não vai aceitar: você está preocupada que eu lese os seus filhos? Então vamos ao cartório agora. Vamos, nós dois, juntos, lavrar documento abrindo mão de tudo em favor deles. Vamos passar tudo para os nomes deles agora, dos quatro. Vamos?”
                           Ela faz que não com a cabeça.
                           “Ué! Desconfia deles também? Só você é honesta, mais ninguém?”
                           “A gente não sabe o que se passa na cabeça dos outros. Já viu quantos filhos abandonam os pais, deixam virar mendigos?”
                           “Eu vou é embora. Presta a atenção no que vou dizer, pela última vez: não pretendo mexer em nada, vender nada, alienar nada, dividir nada, mas se eu notar qualquer atitude de esperteza de quem quer que seja ou se a nossa separação for litigiosa, eu vou pegar a minha metade e vou torrar até o último centavo, na frente de vocês.
                           Não contrata um advogado não. Contrata uma banca, um tribunal inteiro que estarei lá com o meu advogado de sempre, só eu e ele, e não vou estar sozinho por que tenho que me fazer representar por um advogado, é a lei. Mas você sabe  que  tudo  o  que  estiver  escrito  no  processo  fui  eu que  escrevi. Você viu, foi  testemunha de que sempre foi assim, e sempre levei. Acho vocês miudinhos ainda, aprendizes. Não tenta medir forças. Vão se arrepender!”
                           Dei as costas e saí sem me despedir das crianças.
                           Só Adônis falou: “O que é que houve, pai?
                           “Nada. estou indo. Tchau

No mesmo dia Adônis me liga, pedindo que eu vá à escola novamente.
                           Passo todo o final da tarde pensando no que teria a me dizer, qual seria a intenção dele, se não sabia da cassação da procuração e, sabedor, tentava contornar, fazer com que a mãe voltasse atrás; se buscaria uma aproximação dela comigo, para evitar que o negócio caminhasse para o litígio; ou estava agindo de cupido, buscando o reatamento dos pais.
                           Foi o único que durante todo o tempo confiou em mim.

                           Chamo a morena: “vou começar a arrumar o sítio, vou pra lá, ficar alternando dormir lá e aqui, passar os dias lá.”
                           “Por que isso agora? Não está se sentindo bem aqui?”
                           “O bolso é um péssimo conselheiro. Estão todos com os corações nos bolsos. Não vão demorar para aprontar alguma, e o mais provável é que tentem um abandono de lar. Claro que não vão conseguir. Foram muitas as testemunhas, muita gente viu e ouviu que minhas roupas foram trazidas à minha revelia, o moço falou demais e alto para que todos ouvissem. Não levam, mas quero evitar o que possa provocar o meu afastamento deles em definitivo. Quando colocarem os corações no lugar eu fico só aqui. O sítio é propriedade da família. Para todos os efeitos durmo lá para tomar conta.”

XXIV


Sexta-feira, sete e dez, já tomei banho e arrumo os discos no estojo, dia de “Love’s Light”.
                           Dou um selinho na morena, ouço as recomendações de juízo, vai estar atenta, avisa-me, e saio para o ponto do ônibus.
                           Chego vinte minutos antes do meu horário. Está rolando um programa de funk, e fico conversando com o colega, em alvissareira afirmação: “o telefone hoje está danado, não pára”, confirmado diante de três ou quatro telefonemas, um atrás do outro.
                           Vai ao microfone: “Francisco Costa já no pedaço. Daqui a pouco tem Love’s Light, as mais belas canções de levar pra cama, aquele vozeirão de vem cá meu bem (imita, brincando: ‘Love’s Light’).
                           Lá de fora grito para o estúdio (não sai no microfone, a distância é grande): “manda irem tirando a roupa que estou chegando”.
                           Estou bem humorado, doido para o programa começar logo, oásis na semana tensa que tive.
                           Ele ri, no microfone, e se justifica com os ouvintes: “não posso repetir o que escutei. Chega aí, professor!”
                           Aproximo-me. Ele: “caramba! Quando você se perfuma assim volta prá casa?”
                           Emposto a voz, fecho-a mais ainda, e “às vezes volto. Boa noite galera!”
                           “Qual é o cardápio de hoje, mestre? O que é que vai rolar?”
                           “Iiiii, rapaz. Hoje tem Phill Colins, Elton John, Jon Secada, Bee Gees...”
                           O telefone toca, ele se afasta para atender, continuo falando e o percebo cerimonioso: “um momentinho que ele atende a senhora. Aguarda um pouquinho que ele está no microfone.”
                           “... Madonna. Tem também Roupa Nova, Djavan... E vou mostrar o poetinha, Vinícius, um poema lindo, chamado Soneto de Fidelidade: ‘De tudo ao meu amor serei atento/Antes, e com tal zelo e sempre e tanto’, daqui a pouco inteiraço, só prá você. É o que digo sempre: eu entro com a trilha sonora e você com o resto. E vai ser só prazer pra nós três.”
                           Faço sinal para ele soltar a vinheta.
                           Assume o microfone, vou ao telefone e percebo Jocasta muito nervosa: “liga daqui a pouco porque tenho menos de cinco minutos pra programar, ainda não programei nada. Liga daqui a pouco”. Ela bate o telefone.
                           Começo a me programar: consulto a lista de músicas, insiro os primeiros discos nas gavetas, deixo no ponto, programo as vinhetas, deixo no ponto, a gravação da abertura do programa...”
                           O colega percebe que mudei o humor, que estou irritado:
                           “Foi a dona polícia?”
                           “Federal. Federal não, fuderal”, emendo.
                           O colega se despede dos ouvintes, coloca a última música, programa os comerciais e se despede de mim.
                           Normalmente ficaria conversando comigo, ajudando a anotar oferecimentos e pedidos no telefone, por vinte minutos, meia hora, mas diante da minha mudança de humor, hoje, sai voado.
                           Olho o cronômetro, mais doze segundos do último comercial e nove da vinheta, respiro fundo algumas vezes, para aerar as vias aéreas superiores, e levo o dedo ao play, para que entre a música “Going Home”, do Kenny G, prefixo do programa, por ironia, “Voltando prá Casa”, sobre a qual coloco a minha voz.
                           Levo o dedo à mesa e subo o volume de som, estrategicamente: nas residências e estabelecimentos comerciais, nos carros, os rádios e equipamentos de som vão “aumentar sozinhos”, chamando a atenção para o sax maravilhoso de Kenny G, e o telefone começa a tocar. Tiro do gancho, para não atrapalhar minha concentração. Reduzo o fundo musical a um terço da potência da minha voz, e começo: “Hoje, sexta-feira, dia... de fevereiro, agora oito horas e dois minutos... Boa noite!
                           Está começando mais uma edição de Love’s Light.
                           A partir de agora e pelas próximas quase quatro horas falaremos e tocaremos coisas que dirão fundo no teu peito, despertando em ti o maior e o mais nobre dos sentimentos, aquele que nos faz amar e sermos amados.
                           Lembrando que já está valendo a tua participação.
                           Você vai ligar pra... (dou o número da emissora) pra pedir e oferecer canções para quem você preza, ama, admira, venera, idolatra... Que te deixa feliz, vendo tudo azul. (nova pequena pausa)
                           Agora oito horas e quase quatro minutos. Uma boa, ótima, gostosa, mais que gostosa, excelente, maravilhosa noite prá você”
                           Um dedo no play da primeira música, normalmente de trilha de novela, ligada a um personagem que tenha sido marcante, para garantir a permanência dos rádios ligados, e o outro no stop do Kenny. Aperto-os ao mesmo tempo, corto o microfone. O programa começou.
                           Recoloco o telefone no gancho. Imediatamente chama: “Programa Love’s Light, boa noite!”
                           “Boa noite, meu amigo. Você falou que vai botar o Roupa Nova. Qual música você vai botar?”
                           “Peraí, deixa eu consultar aqui, um momentinho só... Vai ser em dose dupla, ‘Anjo’ e ‘Linda Demais”.
                           “Pô, eu estava a fim é de ouvir “Dona”
                           “Faz o seguinte: o Roupa deve entrar aí por volta de nove e dez, nove e quinze. Por acaso eu trouxe “Dona”. Pra não ficar muito em cima, lá prás onze eu toco, falou?”
                           “Valeu.”
                           “Quer oferecer prá alguém?”
                           “Quero, pra minha esposa.”
                           “Então passa o teu nome e o dela”
                           Anoto.
                           “Aí, o teu programa é dez.”
                           “De parceria com o Roupa Nova fica fácil. Valeu pela participação. Boa noite.”
                           “Boa noite”
                           Desligo. Mal coloco no gancho chama de novo: “programa Love’s Light, boa noite!”
                           “É disso que você gosta, de ficar se exibindo, se mostrando. O que é que aquele babaca tinha que dizer que você está perfumado, que tem voz de cama? É prum monte de vagabundas ligarem? Conheço muito bem esse seu tipo, você não me engana mais...”
                           Esta não é a Jocasta que conheço, há alguma coisa errada.
                           Não interrompo, aguardando que dê vazão a todo o destempero, acalmando-se. Continua: “... a sua mulher vai pagar, se vai. Já está pagando, ouvindo um babaca dizer que o homem dela tem voz de cama, imaginando que está sendo cantado no telefone. Ela vai passar na rua e ver as mulheres olhando pra você com cara de quem está pensando sacanagem. Ela vai pagar! Vai sofrer tudo o que sofri...”
                           “Acabou? Vai me deixar falar agora? Você está certa, é tipo mesmo. Não passa pela sua cabeça que era um programa funk, de garotada que não tem nada na cabeça, e ia passar para um programa de flashes back, com músicas de dez, vinte anos atrás, de adultos? Será que não passa pela sua cabeça que ia sair uma voz de adolescente para entrar uma voz madura, de adulto? E que não basta apertar um botão e mudar tudo, tem que haver uma passagem, uma modificação lenta? É tipo mesmo, porra! Quantas vezes lhe expliquei isso? Você queria o quê, que eu criasse o clima para a entrada de um programa romântico falando de Biologia, de política, dando receita de bolo? Fala sério, Jocasta!”
                           “Não pense que me engana com as suas desculpinhas não!”
                           E desligou.

Na quarta ou quinta seqüência, quase uma hora de programa, décimo, décimo e uns pouquinhos telefonemas depois, mais um: “programa Love’s Light. Boa noite!”
                           “Sou eu de novo. Liguei pra te pedir desculpa, eu estava nervosa, não fica zangado comigo não.”
                           “Claro que não. Entendeu o que eu disse? Na escola é que sai o professor de matemática e entra o de português. Lá é só informação. Aqui a gente trabalha com sentimentos, com a sensibilidade das pessoas, tenho que fazer o jogo.                Quantas vezes você me viu sair de casa com enxaqueca e nenhum ouvinte desconfiou que enquanto a música estava tocando eu estava com a cabeça na água fria, no chuveiro?”
                           “Tá bom, vou desligar.”
                           “Tchau”
                           Vinte, vinte e cinco minutos depois liga de novo, sem assunto, perguntando que músicas vou tocar, elogiando o programa...
                           Estranho a falta de assunto e principalmente como está articulando as palavras, falando lento. Preocupo-me. Será que exagerou nos calmantes?
                           Quase onze horas, liga pela quarta vez. Não diz coisa com coisa: que voltou a estudar, se converteu, é batista agora, não vai mais querer saber de homem, homem é atraso de vida, vai me mostrar e a todo mundo que sabe administrar a escola sozinha... Com dificuldade de pronúncia, principalmente dos fonemas bilabiais, o que é sintoma de lábios relaxados, dopados, álcool ou tranqüilizantes.
                           Sou tomado pelo pânico. Diminuo a música e entro no ar, solicitando que um dos meus filhos ligue pra mim com urgência. Algum colega da rádio que estivesse me ouvindo também.
                           E  preocupo todo mundo, o telefone pipocando sem parar, os conhecidos querendo saber o que está acontecendo, em que podiam ajudar, e eu os tranqüilizando: “não, é coisa boba! Está tudo bem”, “e só um recado lá pra casa, coisa boba”...
                           Até os “seguranças” do bairro: “o que é que está pegando, professor? Estamos na área, está precisando da gente aí?”
                           Tranqüilizo-os também, e minha filha liga, com voz de quem estava dormindo: “o que foi, pai, está passando mal?”
                           “Não. Vai lá em casa correndo. Ou a sua mãe bebeu ou está com a cara cheia de calmantes. Ligou e não disse coisa com coisa. Me dá o retorno. Liga de novo pra eu saber o que está acontecendo, senão não vou conseguir terminar o programa.”
                           Agora o dono da rádio no telefone: “o que é que foi, Chico?” Explico que a minha ex-mulher está passando mal, que talvez tenha que interromper o programa, e peço para que ele encontre alguém para me substituir.
                           “A essa hora é difícil, Chico. Quem não estiver trabalhando (eventos) está na gandaia ou dormindo. Faz o seguinte: o piloto automático está com seis horas de gravação programadas. Já são onze horas. Dá pra ir até às cinco, na hora que o Lino chega pra fazer o sertanejo, dá tempo. Joga no piloto automático e vai embora. Está com a chave da rádio? Se não estiver só encosta a porta que daqui a pouco vou aí e fecho.
                           Agora é a morena: “o que foi que houve, amor? Está passando mal?”
                           “Não. É a Jocasta. Acho que está cheia de comprimidos, mas a Minerva já ligou, já foi prá lá. Daqui a pouco vai dar o retorno. Fica fria que ela não está mais sozinha.”
                           “Daqui a pouco vou ligar de novo. Fica tranqüilo que a essa hora já acordaram o Adônis. Calma senão daqui a pouco você está passando mal também.”
                           “Está bem, está bem. Vai deitar.”
                           Minerva de novo: “pai, sou eu”
                           “E aí?
                           “Está lá discutindo com o Adônis porque ele desligou o rádio. Tomou um monte de comprimidos. Vai dormir até amanhã de tarde. Está difícil, pai.”
                           “Eu sei, minha filha. Pra todos nós. Desculpe-me ter te acordado. Como é que você soube que eu estava chamando?”
                           “A dona F. está escutando o senhor e bateu lá no portão.”
                           “Vai dormir, minha filha. Que Deus te proteja.”
                           Foi-se o clima. O que era romantismo virou susto e apreensão, agora raiva e remorsos.
                           Tiro o fone do gancho. Não atenderei a mais ninguém hoje, vai ficar todo mundo me perguntando o que aconteceu.
                           Agora consertar a cagada no microfone, da maneira mais natural possível, para evitar as especulações de quem não tem o que fazer, ou tem: especular a vida alheia.
                           Termina a última música da sequência, entro: “primeiro toquei Mariah Carey, Without You, sem você: depois foi a vez do Wando, Moça, trilha sonora da novela Pecado Capital, primeira versão, e finalmente entrou K-Ci & Jojo, All my life, toda minha vida ou minha vida toda, eu deixo você escolher, pode ficar a vontade. Agora onze horas e doze minutos, boa noite.
                           Bom, gente, tivemos um contratempo aí, e de cara quero agradecer a todos os que ligaram, preocupados. Valeu.
                           É bom de vez em quando um sustinho desses que é pra gente ver como está a audiência, todo mundo ligadinho em mim, ‘brigadão’.
                           Desculpas a você que estava aí no, sabe como é, e na hora do plá o locutor deu um susto e aí, tóim, baixar trem de pouso que tá descendo, vai pousar... Fica chateado não, começa tudo de novo, ela vai gostar.
                           Sem brincadeira, gente: um parente ligou lá pra casa pra dizer que uma tia da minha mulher está mal, de passagem comprada prá lá, lá onde batem continência deitados, e ninguém atendeu ao telefone, todo mundo dormindo, então ele ligou prá cá.
                           Minha filha já ligou e o recado está dado.
                           Fofoqueiros e curiosos satisfeitos?
                           Mais um detalhe: tem gente reclamando que o telefone só está dando ocupado. Insiste que chega a sua vez. É o bendito vício de pedir músicas, ê audiência danada!
                           Só peço pra não ligar pro meu concorrente lá na outra emissora. Ele está cansado. Deixa o rapaz continuar dormindo em paz.”
                           E solto a música.
                           Amanhã, pela primeira vez em três anos, não farei o programa.

XXV

Que pode um homem em duelo com o seu destino senão sentar-se e assistir a si mesmo, ora em vantagem, às vezes em revés, mas sempre impotente para convencer o destino a parar com a briga?
                           Assim me sinto, e o momento é de revés, de derrota anunciada, sem direito à revanche, e aguardo porque sei o que me aguarda.
                           E lembro da vozinha infantil da minha adolescência: “você não vai lembrar de nada do que conversamos, mas vai usar as informações sempre que precisar, durante toda a sua vida.”
                           Sim, fui sempre impotente para convencer o destino a parar com a briga, mas nunca fiquei sentado, não pude.
                           Era eu quem brigava e brigando não pude sentar-me.
                           Por que me sentar agora?

                           Chego de supetão à escola, ninguém me espera, surpreendem-se.
                           “Quero conversar com a senhora”, e sério aponto Jocasta.
                           Assusta-se, e não a encontro abatida como esperava encontrar. Pelo contrário, me parece bem senhora de si.
                           Entramos no gabinete. Fecho a porta. Ela faz cara triste.
                           “Mantenha a mesma postura lá de fora porque não vou entrar no seu jogo não.”
                           “Que jogo?”
                           “Mantenha a altivez, a mesma segurança que você tinha e continua tendo.”
                            “Diz logo o que você quer!”
                           “Por que aquela palhaçada na sexta-feira?”
                           “Só porque eu tomei remédio?”
                           “Tomar remédio todo mundo toma. Só que ficar dopado, falar merda sem saber o que está falando, assustando todo mundo, é outra coisa, não é tomar remédio”
                           “Eu queria morrer.”
                           “Queria morrer porra nenhuma. Quem quer morrer não toma meia dúzia de comprimidos, Jocasta. Quem quer morrer toma uma medida radical, não toma meia dúzia de comprimidos.
                           Você está fragilizada e está chamando a atenção pra você. Tudo bem, mas faz de outro jeito. Você está sacaneando as crianças, me sacaneando, sacaneando a sua família. Isso é certo?”
                           “Da próxima vez eu vou fazer direito. Não vou tomar só comprimidos não.”
                           “Ah! Você está dizendo que vai se matar?
                           Aí concordo com você. Você deve fazer isso mesmo. Nossos filhos são pessoas felizes, por que continuar assim, não é? E os nossos netinhos, tudo inocente, aí vão conhecer a morte dentro de casa, pertinho, beleza. Agora, quem mais merece que você faça isso é a sua mãe. Você já imaginou a dor de mãe enterrando um filho? Você já se imaginou enterrando um dos nossos filhos? Sua mãe está lá velhinha, doente. Só enterrou três filhos até agora. É pouco, merece passar por isso mais uma vez, não é? Quer saber duma coisa? Você não vai se matar porra nenhuma. Você teria que ser muito covarde, muito egoísta com as pessoas que amam você. Você está é fazendo chantagem emocional, jogando todo mundo contra mim, e isso é sacanagem.
                           “Você está muito enganado.”
                           “Larga de ser babaca, mulher, vai aproveitar a vida. Você está nova, é bonita. Você é gostosa, mulher, boa de cama, mulher. Toca um foda-se em todo mundo e vai viver a sua vida, estudar, fazer curso, arranjar um namorado. Você tem dinheiro, mulher. Quantas queriam estar no seu lugar?
                           Você não reclamou sempre que não tinha liberdade? Agora tem e não sabe o que vai fazer com ela? Eu não acredito.
                           Olha, já conversamos sobre os meus sentimentos por você. Se essa palhaçada continuar, nem os meus sentimentos você vai ter, só o meu desprezo.
                           Pensa bem no que eu falei e vê se vale a pena, se todo mundo merece. Se você achar que merece ninguém poderá fazer nada, e ainda vai chorar achando que podia ter feito alguma coisa.
                           Quem menos se fode num suicídio é o suicida, pensa nisso.
                           Vê se não conversa com as crianças sobre esse nosso papo. Pensa direitinho, bota essa cachola pra funcionar que de burra você não tem nada.”        
                           Ela começa a chorar, o olhar longe, perdido, vazio.
                           “Pára com isso! Você vai sair assim, as crianças vão pensar que eu te fiz grosseria, ameacei. Pára de chorar!”
                           Uma das filhas: “o que é que o senhor falou pra minha mãe que ela está chorando?”
                           “Ela ouviu o que tinha que ouvir!”
                           E vou embora.

XXVI

Estou com três homens colocando um poste no sítio, risadas, um sacaneando o outro, como sois acontecer quando três ou mais homens se reúnem a título de qualquer coisa, e o motivo é que um está agarrado no poste, abraçado, para que o poste não tombe, mantenha-se na vertical, e afirmamos que está se lembrando do “negão” dele.
                           Súbito Jocasta passa por nós, muito vermelha, provavelmente conseqüência da longa caminhada até o sítio, em ritmo apressado, fala “precisamos conversar, acertar a nossa situação”, alto e agressivamente, e entra em casa, decidida, como se esperasse encontrar mais alguém.
                           Fala enrolado e a percebo cheia de comprimidos novamente. Os homens ficam calados e disfarçam.
                           Certamente pensam-na bêbada, e pela reação, como moram próximos à família da mulher de meu filho, acredito que o meu drama familiar já tenha vazado, seja agora de domínio público.
                           Entro e com voz baixa, para não escutarem lá fora, seguro o seu braço e com energia afirmo: “você vai ficar calada, para não me envergonhar nem se desmoralizar. Quando eles forem embora conversamos”.
                           Doidos para se livrarem da situação constrangedora, exatamente como eu, aceleram o trabalho e, dez ou quinze minutos depois, concluem a colocação do poste.
                           Agradeço, pago e entro.
                           Logo que começa a falar percebo que desta vez foram mais comprimidos que da vez anterior, e provavelmente misturou com alguma bebida alcoólica, potencializando os efeitos do tranqüilizante, deixando-a fora de si, inconsciente.
                           A depressão é imensa e pela primeira vez admito a possibilidade do suicídio, não é só chantagem emocional.
                           Digo para que se deite e ela responde que não vai usar a cama onde me deitei “com um monte de vagabundas”.
                           Peço que me respeite: “aqui onde você está entram a minha mãe, minhas irmãs, você, suas filhas e suas netas. Seria o último lugar que eu faria de puteiro, me respeita!”
                           “Estou aqui para saber como é que vai ficar a nossa situação!”
                           “Já conversamos sobre isso e acho que já chegamos a um acordo, não tem volta, Jocasta, mas é melhor a gente voltar a esse assunto em outro momento.”
                           “Então ‘tá’, vou embora.”
                           “Vai embora nada. Você vai ficar aqui conversando comigo até melhorar ou aparecer um dos meninos para te pegar. Eu não vou deixar você sair assim, você não está legal.”
                           “Eu estou bem, e quem é você para mandar em mim! O seu reinado acabou!”
                           Dirige-se para a porta. Tento impedi-la. Desvencilha-se de maneira brusca e percebo que para retê-la só com violência, e desisto.
                           Deixo que se vá e passo a segui-la à distância, cuidando para que não me veja, preocupado de que faça um escândalo ou saia correndo, onde chegamos, meu Deus!
                           Aproxima-se uma longa ladeira, íngreme, e aumento a distância. De plano superior me verá facilmente.
                           Retardo os passos e caminho próximo à vegetação que margeia a rua.
                           Ela chega ao topo e começa a descida, perco-a a de vista.
                           Apresso o passo, quase correndo e não a vejo mais, imaginando se cortou caminho por algum quintal, me viu e está escondida ou tomou caminho alternativo.
                           Continuo andando, agora sem saber o que fazer, e encontro ex-mulher de um amigo.
                           Pergunto se viu Jocasta, ela afirma que não, e comenta o que está acontecendo, dando-me a certeza de que já é de domínio público a minha desgraça.
                           Quando estou me despedindo, para continuar procurando, aponta o carro de Édipo. Vem com a mulher e o filho, meu neto.
                           “Lá vem mais confusão”, comento.
                           “Cadê a minha mãe?”
                           Édipo traz tanta agressividade na voz e nas palavras, ameaça tanto e com tal ímpeto que a dona sai correndo, literalmente, gritando “ele vai matar o pai”, “vai matar o próprio pai”.
                           Explico o que está acontecendo, já desnorteado, sem iniciativa, o que acontecer com ela ou comigo dá no mesmo, azar, pior do que está não pode ficar, o buraco é fundo, frio, escuro e parece pra sempre.
                           No interior do carro Édipo me culpa por tudo o que está acontecendo, me atribui responsabilidades e exige solução, por pouco não exigindo que eu volte pra casa.
                           “Se a sua ex-mulher ameaçasse se suicidar você largaria a família atual e retornaria, presumo”, digo, diante da mulher dele, que o olha, e ele nada responde, e a ficha cai nesse momento, acalma-se.
                           Continuo: “vocês têm que procurar uma clínica para a sua mãe, interná-la. Ela ficará lá dois, três meses e retorna inteira. Do jeito que está vai se suicidar, seja voluntária ou involuntariamente, por overdose de tranqüilizantes.”
                           Como esta é a única atitude sensata nesse momento, tenho a certeza que o recado será dado aos irmãos e ao tio.
                           Encontraram-na na Igreja Batista, orando.

XXVII

Poderiam ter procurado um psicólogo, um psicanalista, um psiquiatra, quem sabe um padre, um pastor sério, talvez até um experiente espírita ou mesmo um pai de santo... Qualquer um íntimo da alma humana e seus mistérios, afim da mente humana e seus distúrbios, sensível ao drama alheio, solidário ao sofrimento do próximo.
                           Mas não. Procuraram um advogado.
                           E douto nas coisas da lei, nas frias e indiferentes letras da lei, o moço os alertou que em tratamento psiquiátrico eu poderia interditá-la e me assenhorear dos bens, dando a eles destino de bel prazer.
                           Se mais não afirmou incompetente foi porque poderia ter dito que, sentindo-se ameaçados em seus direitos, em risco de serem lesados, poderiam entrar com medida cautelar, imobilizando o patrimônio.
                           E não buscaram ajuda psicológica para a mulher, cada vez mais próxima de um desatino.

E a overdose veio e foi para o hospital, para o pronto socorro, desintoxicar-se.
                           Tentei de todas as maneiras, através de constantes recados, um encontro com o irmão dela, agora mentor e conselheiro dos meus filhos, com o mesmo retorno sempre: “ele se recusa a falar com o senhor”, “ele não quer lhe ver”, “nem tenta falar com ele que vai dar confusão”...
                           Provavelmente o moço esperava uma retratação minha, que não haveria em nenhuma hipótese, ou justificativas, desculpas... Sei lá.
                           O motivo seria outro: “sua irmã tem que ser internada já, ontem. Diante da desconfiança de todos, para eu tomar a iniciativa tenho que tomar medidas drásticas, através da justiça ou sair atropelando todo mundo. Não vou fazer nenhum nem outro. Estou aqui para dizer internem. Se não houver dinheiro há patrimônio que garante. Vendemos parte. Se deixar por conta dela o final é mais que previsível, é certo.”
                           Mas por vaidade, mágoa ou pensando que ia discutir negócios, o moço não quis conversa.

XXVIII

Mais um dia de apreensão, insegurança e impotência amanhece, e pela primeira vez percebo a morena em estado psicológico semelhante ao meu, nervosa, fazendo o café com movimentos bruscos, a cara amarrada, aspecto de deprimida.
                           Como na véspera não tinha acontecido nada de anormal, estranho aquele comportamento: “por que é que você está assim?”
                           “Você não escutou o telefone não?”
                           “Não, por quê?”
                           “A Jocasta ligou às duas e meia da manhã, ficou mais de meia hora no telefone.”
                           “E o que é que ela queria?
                           “Não disse coisa com coisa. Como sempre, falou sozinha, não me deixou falar.”
                           “O que é que ela disse?”
                           “Amor, acho que está na hora da gente dar um tempo, você tem que contornar isso, não vai acabar bem. A Jocasta vai se matar.”
                           “Dá a sua opinião depois, agora quero saber o que ela falou.”
                           “Ela estava completamente fora de si, só fez ameaças e falou barbaridades.”
                           “O quê, caramba?”
                           “Falou que eu já tomei o homem dela, que vou tomar o patrimônio dela, mas que eu nunca vou ser ela, que o que eu quero é isso, ser ela, mas que não vou conseguir.
                           Falou que eu estou usando você pra me dar bem na vida. Que eu quero enriquecer a suas custas, mas que nós jamais seremos felizes. Que eu nunca vou conhecer a felicidade que foi dela porque eu nunca vou ser ela, que não adianta tentar.”
                           Concluo ser o bastante para irritar, mas não para deixar insegura a ponto de sugerir o “dar um tempo”. Deve ter dito mais. Insisto: “você falou que ela ficou no telefone mais de meia hora. Claro que falou mais coisas, o quê?”
                           A morena hesita, hesita, como se tivesse medo de repetir: “ela falou que ninguém consegue ser feliz em cima de um cadáver, que ela vai se matar.
                           Amor, eu não duvido mais disso. Ela falou com muita convicção, está enlouquecendo. Imagina que nunca conversei com ela, não sei o que ela pensa, como ela é, e quero ser ela, quero ser igual a ela... Por tudo o que você me disse dela... Não bate com se matar para impedir a felicidade de alguém... Amor você tem que fazer alguma coisa, ela está enlouquecendo... Ela vai se matar.”
                           “Você sabe o que significa fazer alguma coisa nessa altura? Significa matar o Édipo ou pelo menos colocá-lo na cadeia, que motivos tenho, sair na porrada com o irmão dela, talvez dar porrada nas minhas filhas, me indispor com os meus genros, e se tiver mais porrada não duvido, encarar processos que moverão contra mim, com certeza, e voltar pra casa, rompido com todo mundo, e viver o resto dos meus dias ouvindo lamúrias, queixas, cobranças, e atento a uma vingança de Jocasta.
                           Eu não vou me curvar a chantagens e muito menos às pressões dos meus filhos, pra viver o resto da minha vida na condição de um vira-latas de rabo entre as pernas, humilhado, desmoralizado. Ainda tenho dignidade, mulher!                          
                           A essa altura só uma internação para tratamento radical, possivelmente sonoterapia, mas eles acham que não.
                           Se ela se suicidar por vontade própria, por livre arbítrio, ninguém tem culpa.
                           Para quem está decidido a isso não há vigilância possível. Em um segundo atiram-se pela janela. No quarto, enforcam-se com as roupas de cama... Não há como impedir.
                           Agora, se o suicídio for involuntário, por uma overdose de tranqüilizantes ou coma etílico, aí com certeza poderia ter sido evitado.
                           Se para se eximir de culpa ou de remorsos você quer se separar, tudo bem. Mas saiba que vou alugar uma quitinete, ou morar com a minha mãe, sair do Rio, qualquer coisa.
                           Eu só não volto é para casa. Essa é a única hipótese descartada. Incogitável.
                           Exigir isso de mim, depois de tudo o que já aconteceu é exigir que eu me transforme em outra pessoa, que me despersonalize. Isso, tenha a certeza, eu não vou fazer. Qualquer coisa, menos a submissão à chantagem e a pressões. De ninguém!
                           Todo mundo se separa, porra. Dois irmãos dela se separaram, minha irmã se separou, Édipo se separou, Esmirna se separou... Só eu é que sou propriedade inalienável, tenho dona?
                           Até quando vou continuar abrindo mão dos meus sentimentos para agradar os outros? O meu filho caçula já me deu netos, não tenho mais que abrir mão da minha felicidade para manter a unidade da família...
                           Até quando vou continuar lastimando as oportunidades de felicidade perdidas? Por que só eu condenado a um único casamento na vida? Não bastam as cobranças que me faço, agora vem todo mundo cobrar? Eu não sou modelo de nada, porra!
                           De certinho só tenho a certeza de que não quero mais continuar casado, é um direito meu! Nunca escolhi parceiro ou parceira pra ninguém e todo mundo palpita a quem devo comer ou deixar de comer? Chega!
                           Eu não vou me submeter a isso. Não posso e não conseguiria. Mesmo que eu quisesse.”
                          
Resolvo ir à escola imediatamente. Encontro Jocasta abatida, muito abatida, em profunda depressão, havia discutido com os filhos.
                           Procuro não me informar dos motivos, a hora não é de tomar partido ou emitir opiniões, posso dividi-los, e os quero todos juntos da mãe, pelo menos nesse primeiro momento. Passado o pesadelo me reaproximo.
                           Antes que eu a chame para o gabinete, ela me chama, tranca a porta a chave:
                           “Essa mulher não te ama, é coisa de mulher nova, de pele, ela está deslumbrada, você é atraente, sedutor... Amor é para sempre, isso que ela sente não.”
                           “Não foram os sentimentos dela que me separaram de você, Jocasta, foram os meus sentimentos, entenda isso.”
                           “Ela não vai ficar com você pra sempre, eu sim. Você está escolhendo o caminho errado, vai morrer sozinho, sem nem quem lhe dê a mão, uma colher de xarope. Vai gemer e ninguém vai ouvir. Você vai morrer só e vai lembrar de mim...”
                           “Isso é opinião ou praga?”
                           “Certeza. Você é muito mais velho que ela. Não vai demorar muito e ela vai cansar, vai te dar um pé na bunda. Você vai envelhecer, homem. Quando tiver dado o caldo que tinha pra dar vai ser cuspido, abandonado.”
                           “Pode ser, mas vou pagar prá ver.”
                           “Escuta: isso que ela sente é só atração, coisa que toda mulher sente e foge... Você sabe contornar, tem conversa fácil, e ela foi na sua conversa. Eu até acredito nos seus sentimentos, mas nos dela não. É o tipo de mulher que se despe fácil...”
                           Irrito-me: “não posso dizer a mesma coisa. Ela só se despiu pra mim depois que pôs o marido na rua. Continue dando a sua opinião sobre sentimentos porque do resto você não sabe de nada.”
                           “Eu vou me matar!”
                           “Você está sendo de uma crueldade monstruosa. Eu tenho duas opções, você está me dando duas opções: “voltar para casa e ser infeliz, ou não voltar e ser infeliz, porque você se matou. É muita maldade, Jocasta!”
                           Extremamente nervosa, perde o controle emocional, baixa a guarda e toca num assunto que era tabu para nós. Reajo imediatamente: “diante disso não há mais a menor possibilidade de retorno. Se essa mulher deixar de me amar, me der um pé na bunda, como você falou, me cornear, qualquer coisa, eu moro só, vou para um asilo, para debaixo de uma marquise... Eu só não volto é pra casa.”
                           Ela olha dentro dos meus olhos, um olhar duro: “eu vou me matar! Você não vai conseguir continuar com essa mulher, não vai.”
                           ”Você está sendo covarde com os seus filhos, seus irmãos, sua mãe. Isso é egoísmo.”
                           Ela dá de ombros: “todo mundo é egoísta.”
                           Insisto: “já parou pra pensar que o mundo vai ficar pequeno pra mim e o Édipo, que terei que matá-lo, se ele não me matar primeiro?”
                           “Você sabe que você não teria coragem de fazer isso, nem ele. É destrambelhado mas é seu filho. Com o tempo vocês se acertam”
                           Continuo insistindo: “você me disse que agora é evangélica, não é?”
                           Ela faz que sim com a cabeça.
                           “Então você sabe qual é o destino dos suicidas. É no inferno que você pretende investir, é isso o que você quer?”
                           Cala-se, como se estivesse com medo, titubeia, e insisto: “você sabe o que penso sobre isso, você também teve acesso à literatura espírita. Não acredito em infernos, acredito é na responsabilização pelos nossos atos, e se você cometer essa estupidez ficará numa situação muito pior da que está agora, e tudo isso que você está passando lhe parecerá um agradável piquenique. Se fizer isso vai se arrepender, mas vai ser tarde.”
                           Percebe que está cedendo, sensibilizada pela minha argumentação, e foge. Dá as costas e abre a porta, impondo-se não me ouvir mais.
                           E antes de sair, vira-se, olha-me nos olhos e com muita convicção afirma: “eu te amo. Não se esqueça nunca disso. Eu te amo!”
                           E sai.

XXIX

Estou sentado na poltrona, vendo o programa rural enquanto o jornal local não chega, a morena no quarto penteando o cabelo do filho, uniformizando-o para a escola, cheiro de café no ar, e o telefone toca.
                           É minerva: “pai, a minha mãe tomou veneno. Está em coma no hospital.”
                           Lentamente, letárgico, dissociado de qualquer idéia, vazio, incapaz de ordenar qualquer pensamento, ponho o fone no gancho.
                           “Quem era?”, a morena indaga.
                           “Minerva. A Jocasta tomou veneno, está em coma.” E completo: “se for o mesmo veneno que usávamos para exterminar os ratos na granja não há saída. É um veneno muito poderoso. Não vai demorar outro telefonema, ela não vai resistir.”

Reconquistar agora cada filho, um a um, sorvendo sapos como se balas de anis ou hortelã, porque dor nenhuma poderão impor a mim maior que a dor de um velório de mãe.
                           Aceitá-los, fazer-me anteparo da dor, assumir a culpa pela orfandade que lhes impus porque, ainda que não seja isso, a verdade é só a versão que trazemos.
                           Acolhê-los, tornar-me alheio a qualquer acusação, a cobranças, culpas,  para não tomar caminho idêntico ao de Jocasta.
                           Fazer de cada minuto momento de reconquista, e esperar o anunciado, Barone pronto para os meus braços, uma rosa edificada num campo de batalha, porque escrito e me alertado a quase meio século, antes que seu irmão primeiro chegasse.
                           Voltarei a sorrir, é certo, mas sempre a meia boca, envergonhado de estar sorrindo, amamentando com o meu sangue a dor, esse tumor maligno que me devora, e fingir.
                           Fingir-me ainda forte, capaz de liderar e impor diretrizes, senhor de mim e aberto a todas as verdades, ou do que supus verdades, com a pose do que tem nas mãos o microfone numa assembléia, milhares esperando que eu aponte por onde, para onde, mesmo sabendo-me menor que aquele menino no jardim da Dona Maria, mais envergonhado que quando impotente diante de um corpo nu, mais impotente que quando assistindo o corpo de papai enrolado num lençol, a caminho do necrotério, inseguro como num avião na tempestade, desesperado e reduzido, uma criança próxima a um paiol em chamas.
                           Assim, até que o instante último me consuma e alivie.
                           E como uma ostra que se crê apartada do mar, enclausurada em sua própria concha, farei de mim o meu exílio, um velhinho estranho que conversa com os cães, as galinhas e as cabras, chamando-os de filhos.

XXX

O telefone toca. Não precisaria ter tocado, sei o que ouvirei.
                           É Minerva em prantos: “pai, a minha mãe faleceu. Te cuida paizinho porque agora só tenho você!”
                           A vontade é sair chutando tudo, quebrando tudo, rasgando tudo, destruindo o apartamento, o prédio, o mundo, a começar por mim próprio.
                             Não sei se daqui a pouco estarei com outra família, talvez não, o tempo.
                             Se estiver, vou pretendê-la definitiva e somada à primeira, mas longe, muito longe da felicidade que esperei, mutilada por um velório ao qual não compareci.

                           Ainda navegarei aqui por alguns anos, mas sem contá-los.
                           Não sei mais como passar pelos vinte e cinco de dezembros.
                           Não haverá mais natais!

FIM

In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.

N.A. – Solicito aos amigos que, em possíveis comentários, não julguem nem emitam juízos de valor. Estou partilhando um texto literário, não mais. A Deus e às consciências dos personagens cabe julgar. Por favor.


Francisco Costa.