Monstro? Talvez.
Santo? Provavelmente.
Honesto? Digamos que...
Desonesto? Depende.
Exatamente como você
Porque iguais,
Humanos.
Para quem bem viveu o amor
Duas vidas que abrem
Não acabam com a luz.
São pequenas estrelas
Que correm no céu,
Trajetórias opostas
Sem jamais deixar de se olhar.
É um carinho guardado no cofre
De um coração que voou.
É um afeto deixado nas veias
De um coração que ficou.
É a certeza da eterna presença
Da vida que foi na vida que vai.
Saudade da boa, feliz cantar.
Foi bom e pra sempre será.
(Luiz Gonzaga Júnior)
Pro Leone, meu filho
uma rosa inesperada
num campo de batalha.
Atividade
de alto risco o futebol naquele campo improvisado.
De
um lado o muro-baliza, do outro, chinelos-traves, uma discussão infernal: foi
trave, passou por fora, gol, todo mundo com razão, o ângulo de visada do
observador é que determina a trajetória aparente da bola, todo movimento é
relativo.
Einstein!
Elementar, mas ninguém sabe disso e cada jogador uma opinião.
Melhor,
uma certeza, e a discussão, porrada, pára o jogo, assim não dá, vocês estão
roubando... O time de fora, o que jogará com o time vencedor, partida de dois,
vendo gol até na saída da bola pela lateral.
Pára
a bola, olha as garotas, a garotada toda mexendo, assovios, gracinhas, as duas,
a loura e a mulata, rindo, até que a loura pergunta à acompanhante: “viu o baby?”
Incógnita
em prova final de matemática: quem de nós é o baby? E continuam andando, o jogo
parado.
Olham
para trás, justamente pra mim, senhor meu Deus, pai dos tímidos e desarvorados,
o baby sou eu, justo eu, e com o indicador faço o gesto e balbucio “vou aí”, bem articulado, para permitir
a elas e a todos a leitura labial, lenha na minha fogueira da vaidade.
Param,
esperam e alguém se propõe a me substituir no jogo.
Não!
Volto logo, álibi por não ter o que falar, maldita timidez, “logo mais às sete no parque”, e volto
correndo, dá a bola ao goleiro, sai logo, cara, passa a bola.
Papai chega zangado não sei porque, cheira a
álcool, discutiu com mamãe e vai logo dizendo “ninguém sai, todo mundo dormir cedo hoje”.
“Mas pai, o parque...”
“Você já ouviu, não me aporrinhe”, e as
meninas, a loura e a mulata, de que adiantou parar a pelada, engolir em seco a
timidez, marcar encontro... Dormir cedo, que merda!
Ainda
não será desta vez que a mulata começará a morrer.
Há uma roda gigante, carrossel, muitas luzes,
gente, muita gente circulando feliz.
Estou
num parque de diversões. Alguém passa comendo algodão-doce, há cheiro de
pipocas e vejo as duas, a loura, falsa loura, e a mulata, minissaias e blusões
largos, de homem, talvez dos irmãos, sandálias gregas, longos cadarços
enlaçando os tornozelos, canelas, chegando quase aos joelhos, as mesmas da
esquina, as que me esperaram aqui mesmo na semana passada.
Vou
à cabine de som e ofereço uma canção: “alguém
próximo da carroça de pipocas, de blusão verde, oferece a próxima canção às
duas fadas que passeiam no parque, vestidas...”, e lá vem Roberto Carlos:
Olha aqui, presta
atenção
Esta é a nossa canção
Vou cantá-la seja onde for
Para nunca esquecer o nosso amor...
Risadas
cúmplices, assentimento de chegada, mas não me aproximo. A maldita timidez só
permite um sorriso amarelo e tosco. Vão embora.
Daqui
a exatos trinta e nove anos matarei a mulata. Impiedosamente a matarei.
O mesmo portão de três, quatro anos atrás, olho
grande na ex quase ex, quase mulher agora, longilínea e toda certinha, em todos
os sentidos, lotada de encantos, olhos ariscos e peitos durinhos.
“Encontro como, se minha mãe não me deixa
sair? É mais fácil namorar a minha prima”.
Essa
não que centímetros a menos e quilos a mais, e fala gritando, maritaca
enlouquecida esbanjando risos pra qualquer um, já estou quase atrasado para a
prova de Descritiva, esquadros, compasso, régua T, de cálculos...
Por
que demorarão tanto a inventar essas maquininhas de calcular, meu Deus?
O
cadernão A-2 e o estojo com as lapiseiras: A, B, 2B, HB...
Mais
difícil carregar a tralha toda no ônibus lotado que fazer a prova, e as duas
novamente, a loura e a mulata, passam só olhares e sorrisos. Dão o volta no
quarteirão.
Vêm
conversando sorrisos indiscretos, propositalmente chamativos, olhadas de vou te
engolir, riso meu de troco, ciúme da ex quase ex.
Nova
volta no quarteirão, passos lentos, bem lentos, talvez para eu segurá-las, e
não haverá terceira nem quarta voltas no quarteirão pequeno agora, tão rápido
retornam.
Faço
sinal para que parem, me esperem.
“Oi, quantos bolos e desencontros, hein!
Você deixou a gente esperando no parque duas vezes. Gosta de dar suadouro;
garoto difícil hein!”
Dizer
que pai prende e escola em primeiro lugar, território pequeno e limitado, em
espaço e tempo, já condicionado como um cãozinho de estimação, nunca!
Papo
vai, vai mais ainda, ainda mais e... “Vamos
ao cinema?”
Entreolham-se.
Ele está chamando as duas? Nó de dúvida. Só quer ser nosso amigo ou o miserável
é garoto de harém, ir ao cinema com as duas?
Maldita
timidez que atrapalha a ordenação dos pensamentos. Loura não que loura não
apraz, será assim a vida toda, “com você”,
olhar na direção da mulata, a branquinha se despedindo, mal disfarçando a
frustração, que azar! Um baby só para duas, uma ficou sem, e a prova ficando
para segunda chamada, esforço maior na feira.
Pedir
dinheiro em casa, pra taxa, é confessar gazeta, mal sabe a mulata que começará
a morrer agora.
II
Menstruação atrasada, vinte e poucos dias, e o
teste na farmácia, nossas brincadeiras infantis de reconhecimento físico,
extrapolação de enciclopédias sexuais, conversas de esquinas e revistas
proibidas jogando-nos às costas toda a complexidade das relações adultas, o que
fazer?
Confidencio
à minha irmã, “caramba, e agora? Mamãe
tem que saber”; a papai, “você tem
merda na cabeça?” A vovô, vovó... Que fazer?
E
os sonhos infantis transpondo o portal do que deveria ser maturidade, como se
emprego, casa, mobília pudessem surgir do nada, brotassem do chão, se
materializassem na ponta de uma varinha de fada, todo mundo preocupado, menos
nós, felizes, presos para sempre nas algemas daquele neném, projeto ainda,
células-tronco erigindo-se gente e compromissos e necessidades e sacrifícios,
promoção compulsória ao mundo dos adultos.
E
a assembleia em que não consegui direcionar o meu ponto de vista, não tive voz
ativa, não influi, limitando-me a voto vencido, sem vez e sem voz: “na porta de uma universidade? Da academia
militar? Desistir de ser piloto? Vale o sacrifício? Menina negra, mãe viúva,
vocês crianças ainda, desemprego, sem teto, maluco, eu pago a resolução do
problema, eu também, queremos o melhor pra você, não entra nessa, vai se arrepender,
só dezoito anos...” Um longo rosário de preconceitos à farta debulhado.
Abortar
ou não abortar, o dilema estampado em cada átimo daqueles dias.
Cheguei da escola tem pouco, janta não, preocupado
e, entre o sono e a vigília, meio barro meio tijolo, nem dormindo e muito menos
acordado, a vozinha infantil, súbita e musical, plácida como num conto de
Grimm, instaurando o pânico, que é isso, meu Deus!
“Calma que não vou lhe fazer mal, calma,
você vai ficar calmo”, e uma celestial tranquilidade como jamais voltarei a
sentir na vida.
Logo
percebo que não me fala ao ouvido, mas direto na cabeça, “quem é você?”
“Não posso dizer, não tenho ordens, quero
conversar contigo, é importante, não me feche a porta.”
Prematuro
pretenso intelectual, crente da sabedoria e de todos os conhecimentos postos à
mesa, à minha disposição, ouso: “de onde
você vem?”
“De longe, longe, muito longe.”
“Na velocidade do
som?”
“Não, muito, muito
mais rápido.”
“Na velocidade da
luz?”
“Não, muito, muito
mais rápido.”
“Acima da
velocidade da luz não há mobilidade...”
“Eu venho na
velocidade do pensamento, é instantâneo.”
Só
voltarei a ouvir isso, melhor, ler, quando daqui a alguns anos tomar
conhecimento da literatura espírita.
Ainda
sou católico e toda a minha cultura religiosa se restringe ao catecismo, antes
da primeira comunhão, e da vida dos santos, minha avó coleciona as revistas que
saem mensalmente.
Continuo
conversando, por pensamento, até que quase no fim sou alertado de que me
esqueceria de tudo o que foi dito, mas que, nesta existência, usaria as
informações na medida em que fossem necessárias, e concluiu: “não faça o que querem que você faça. A sua
missão é viver entre nós. Você viverá entre nós em cada dia da sua vida, e
quando chegar na hora de voltar um de nós estará ao seu lado, na sua
cabeceira.”
Antes
que eu possa refletir, adormeço.
São quase dez horas da manhã. Mamãe não estranha a
mudança de comportamento, acordar antes do sol, junto com os galos e os
operários da fábrica de tecidos rumo à estação, a maria-fumaça engolindo
trilhos, trabalhadores e marmitas.
Mulher
grávida, motivo de ficar na cama pensando.
Tento
me lembrar ao máximo do ocorrido, cada palavra, cada entonação, cada
ponderação, a doce e melodiosa vozinha infantil e... Eureka!
Visto-me
correndo e vou à casa da mulata: “você
não vai fazer o aborto! Nós vamos casar!”
Casa pobre, poucos convidados, a voz de um tio, “pelo menos esse a gente sabe que é homem”,
ironia e maledicência por causa do meu jeito orientado por vovô.
Confundiam
educação e requinte com viadagem, sensibilidade com baitolagem, “ele escreve versinhos e vive colorindo
desenhos. Sei não”, os tios paraíbas que não gostavam de flores porque flor
não serve pra comer, a mulata maquiada, vestido branco, véu e grinalda
camuflando o nosso segredo, momentos antes, na igreja, até que a morte os
separe, “sim”, linda na carinha
infantil de menina violentada, o meu terno que bem poderia caber mais um de
mim, igreja cheia, família conhecida, pioneira de muitos anos no bairro,
casando o filho mais velho, tão novo ainda, os dois, como é que os pais
consentem?
Bocas
de matildes e cassandras, chuva de arroz, vai fazer falta um dia, a grinalda
jogada, minha irmã, foi mesmo a próxima a casar, coincidência, o bolo, as
fotos, lua de mel no mesmo bairro, casa próxima mobiliada pela família, a irmã
dando louça e plásticos; papai o fogão; mamãe os paninhos de prato, de mesa,
colcha, lençol, cortina, guardanapo; vovô as poltronas, mesinha de centro, o
armário de cozinha; panelas fui eu que comprei; o dormitório antigo,
Espandelli, segunda mão, onde dormi na infância, voltando pra mim, vovó
comprando outro, inferior, capricho de vó; geladeira e televisão só um dia,
quando melhorar o meu salário, nós dois, eu e a mulata, passando na praça, mãos
dadas como em tantas outras vezes, um oceano de sonhos à frente, manhãs
luminosas e safras perenes de fartura, felicidade a disposição em estoque
ilimitado.
Sonhos,
sonhos, esperanças esparramadas sobre nós, reduzindo tudo a sorrisos porque
qualquer outra coisa longe de nós, estranha e sem despertar interesse.
Mesmo
quarto, mesma sala, mesmo ar a nos fazer arfar, tudo comum.
Mais
tarde os filhos, patrimônio.
O
oceano dos sonhos não é de água, é de luz que cintila e incandesce, lateja
cores e esbanja tons numa tempestade indescritível de orgasmos e lágrimas de
felicidade.
Na sala de espera da maternidade emendo cigarros,
ansioso, todo nervos expostos esperando notícias.
Nem
bem fiquei homem serei responsável por outra criança, mais amiguinho que filho.
A
enfermeira sai da sala de parto: “nasceu,
pai, é uma menina”.
Quero
ver o bebê, “não pode”. Então a mãe,
também “não pode. Vai pra casa e volta na
hora da visita”, a curiosidade roendo dura*, comigo rindo sozinho na rua,
demente, no ônibus a impressão de que todo mundo olha, a vontade de gritar eu
sou pai, sou pai, me ouviram?
A
primeira filha, a mais velha. Os outros serão repetições, alegria multiplicada,
mas sem a pompa do ineditismo.
Minha
filha é linda, gordinha, esperta, e não tenho mais só uma namorada de papel
passado.
Tenho
agora uma família. Minha esposa não é mais só uma garota desvirginada, é uma
mulher. Nado em nuvens, voo em jardins, esbarrando em flores, só sorrisos.
*Não havia ultrassonografia ainda. Sexo e condições
físicas do bebê, só na hora do parto.
III
Meus anos foram todos medidos em natais, sempre
separados por festas juninas, vizinhas de páscoas, explosões de risos e
chocolate depois de longos porres quaresmais, os santos cobertos de roxo e os
sorrisos proibidos, Deus está morto.
Não
havia ainda décimo terceiro salário, nem gratificação, nem bônus, debêntures,
retirada... Só a multiplicação da poupança familiar, com pães bíblicos
fazendo-se brinquedos e mesa farta e roupa nova, papai-noel compensando o
miserê do ano todo.
Virou
vício de tal maneira ancorado na dependência que reservei biscates, serões,
poupança, empréstimos... Para semear sorrisos na geração seguinte.
Diante
do doce exagero, do chão até quase o teto, lâmpadas multicoloridas piscando a
intervalos variáveis, criando ritmos, embalando sonhos, ornando o futuro
passado dos meus netos, todo o arsenal de enfeites das lojas: bolas das mais
variadas cores e brilhos, papais-noéis, anjos, sinos, bichinhos, chapéus,
bengalas, réplicas de frutas em miniatura... De maneira que ao observador
infantil haja sempre novidade a cada vez que olhe, a árvore resplandecendo como
uma torre de luz entre presentes, a mesa-bandeja importada da minha própria
infância mastigando nozes, avelãs, amêndoas, ameixas, rabanadas, pavê, torta,
canjica, aletria...
Anunciando novidades
desconhecidas: tâmaras, damasco, pistache humilhando as passas e frutas frescas
do ano todo, me dá a coxa do peru, mais uma fatia do pernil... O menino Jesus
nasceu e quem está ganhando o presente sou eu.
Pequeno,
eu sonhava com os meus olhos. Agora, sonho com os olhos dos netos e dos filhos
dos vizinhos.
J.,
a matriarca, cansada de forno e fogão, atarefada ainda em servir, “olha esse menino aí, vai cair da cadeira”.
“Onde você colocou o vinho, tigrão?”
As
crianças da vizinhança vindo pegar presentes também.
É
comprá-los a mais que mais crianças chegam, cada vez mais, em todos os anos, “pode pegar, fica com vergonha não, quer
refrigerante?”
Se
a felicidade existe me espera em todos os natais, como virtuosa esposa na
janela, desejo e saudade, vendo o navio que partiu a um ano chegando agora.
Pai e mãe, a pobre, desdobrando-se no serviço
doméstico, nas atribuições de mãe, e ainda tendo que ser pai, só reservando
para mim os detalhes mais graves, “vou
dizer ao teu pai, deixa ele chegar”, o que em nada influi na vida conjugal,
recebendo-me gueixa só sorrisos, café na mão, comida no prato, sempre pronta ao
agrado, fazendo-se tonta ao evidente, eu pouco paro em casa, domando o ciúme,
transformando-o em atenção e carícias.
Eu
ainda a acredito mulher mais que irmã, esmerada esposa investindo na velhice,
fazendo ouvidos de mercador à maledicência de vizinhas e parentas, “um dia ele cansa, se aposenta, põe pijama e
vem pra minha cama de vez”, já morrendo aos poucos sem saber.
Estou atarefado, completamente absorto com um
monte de provas e relatórios a corrigir, e observo Jocasta, enxada na mão,
vermelha de sol, suada em bicas, capinando o meio-fio.
Está
envelhecendo, estamos envelhecendo, penso, analisando-lhe as formas mais
arredondadas, mais flácidas, as primeiras rugas debutando, concentrada e alheia
no seu mundo de só filhos e marido, casa e afazeres domésticos, pouco ousando
além da cerca e nada sabendo das ruas.
Sou
mais afortunado em rugas. O
tabagismo e a vida intensa, as noites de pouco sono, apreensão e raiva
política... Compondo a geografia do meu rosto que ilustrará o passado dos meus
netos correndo no quintal.
Somos
tão íntimos agora que nos adivinhamos em olhares, cada um sabendo exatamente o
que o outro está pensando, mais irmãos que cônjuges.
Amo-a
de amor sem fim, órgão a mais na minha magra anatomia, mas de desejos poucos,
embora consciente dos atrativos de sedução ainda presentes e do desempenho
convincente.
É
a mulata que me chamou baby, e baldia e tonta, alojou-me em seu coração.
Está
morrendo e não sabe.
Mudou
o tratamento, não sou mais baby, promovido a tigrão: “vai almoçar agora, tigrão? Que cara é essa, o que você pretende comigo,
tigrão? Ligaram pra você, tigrão.”
Coerente
com os meus sentimentos, eu a chamava filha, embora pudesse chamá-la mana, tão
diferente e indiferente eu estava, num calvário de piedade e irritação,
amando-a o bastante para não ir, mas não o bastante para ficar.
IV
Agora transito por um período dos mais estranhos
já transitados por mim, como se eu atravessasse um intervalo na minha vida.
Sem
nem mesmo perceber, perdi o gosto por tudo: parei de pintar, de escrever, dar
aulas, fazer locução no rádio... Por absoluta falta de vontade.
Até
tento escrever, só conseguindo pouco mais que redações de colegiais, com montes
de papéis se acumulando no lixo.
Minhas
leituras, pouquíssimas, reduziram-se aos livros técnicos, quase todos ligados
às atividades agropecuárias, matrizes dos meus sonhos surreais, onde me vejo
fazendeiro no interior do país.
Meus
filhos e minha mulher estão preocupados, questionando se descobri alguma doença
grave, perdendo o gosto pela vida, desligando-me, e não só emocionalmente, de
todas as atividades, passando a bola para os herdeiros.
Comentam
com alguns dos meus irmãos, que se tornam cúmplices nas suspeitas.
Se
não tenho uma explicação nem uma justificativa para o que está acontecendo,
habita em mim a estranha sensação de que haverá uma mudança radical e
definitiva na minha vida, com momentos em que me surpreendo na expectativa da
morte se aproximando.
Há
um sentimento de inutilidade em tudo o que faço. Tudo perdeu valor, e adiante
só uma incógnita de impossível decifração.
Estou em meu estúdio, cercado de livros, diante do
computador, a prancheta ao lado, papéis, a pena de nanquim...
Redijo
e ilustro uma apostila de horticultura orgânica, e o telefone me interrompe: “pai, a dona Carmem, supervisora da
Secretaria de Educação, está aqui e quer falar com o senhor.”
Maldigo o
contratempo, mudo de roupa rapidamente, manobro o paleolítico fusquinha,
carinhosamente tratado por mim por “Jacozinho”, e me dirijo à escola.
Despacho
com a dona e resolvo dar uma volta por corredores e salas de aulas, para rever
alunos e funcionários, já esquecido da substituição temporária da professora em
recuperação, cirurgia bem sucedida, quando me deparo com ela, esguia, magra,
muito magra e morena, os cabelos alvoroçados, como que saída dos meus sonhos, como
se eu a estivesse esperado sempre, íntima e familiar, para o meu espanto.
Surpreende-me
sentimento desconhecido, algo assim como pai descobrindo filha que não supunha
existir, ou recebendo de volta uma filha que partiu a muito, séculos atrás.
Nada
ouso dizer, nem mesmo cumprimentar, na estupefação sem motivos conscientes.
Retorno
à secretaria e minha filha percebe o meu estado de espírito: “o que é que houve, pai?”
“Nada, por que?”
“O senhor está
estranho!”
Aguardo a hora
da saída, para vê-la ainda mais uma vez, e minha filha a apresenta: “esta é fulana. Está substituindo a V.. Olha
que coincidência: foi minha colega nos bailes do colégio. Casou com um amigo
nosso, o sicrano. Que coincidência, né?”
A tarde o
trabalho não flui, não avança, as ilustrações tremidas e violentando as regras
de perspectiva e volume, o texto tati-bi-táti me levando à rede, a permanecer
deitado, de barriga para cima, destilando oníricos questionamentos: de onde a
conheço? Onde a vi? Por que tanta fragilidade e carência no olhar?...
E
não são questionamentos do homem, sexuados, mas do eu absoluto identificando um
novo reencontro, com ela ocupando tanto espaço nos pensamentos que mais espaço
nenhum de sobra, para nada.
Volto
a freqüentar a escola, mas totalmente desinteressado da escola, dos seus
trâmites, do dia-a-dia.
Busco motivos para circular na escola, criando
oportunidades de passar pela porta da sala em que está trabalhando, cada vez
mais tomado da certeza de que me é familiar, fantasiando como deve ser a sua
vida, se é feliz, realizada, de uma maneira como nunca aconteceu antes com
nenhuma colega.
É
um sentimento e uma sensação assexuados, mais para o que eu sentia em relação
às minhas filhas que à minha mulher.
Termina
o período pós-operatório e a professora titular retorna.
Na
hora da saída agradeço a colaboração, afirmando ter gostado do seu trabalho,
com convicção garantindo que na primeira oportunidade ela será contratada, no
meu íntimo a certeza de que não foi um encontro ocasional e passageiro, embora
ainda não nutra nenhum interesse no plano da sexualidade.
Os
dias prosseguem e a falta não arrefece, um vazio do cão, o mesmo que sentimos
quando uma filha casa ou viaja, uma torcida louca para que se forme uma nova
turma ou alguma professora se demita, para que volte logo.
E
ela nem desconfia.
Como se estivesse indelevelmente escrito, pouco
mais de um mês depois uma das professoras, chamada para posse na Prefeitura,
pediu demissão.
Não
titubeei: chamei a minha filha e... “Chama
aquela moreninha sua amiga, a que substituiu a V.. Gostei do trabalho dela.”
Reintegrada à
equipe, agora com vínculo empregatício, comecei o assédio, mas ainda sem
consciência disso, movido unicamente por extrema curiosidade: de onde eu a
conhecia? O que a fazia tão íntima, como se em presença contínua desde tempos
imemoriais? Que necessidade enorme era essa, a de protegê-la?
Voluntariamente
apartado da direção da escola, do rádio, sem pintar nem escrever, como afirmei,
passei longas e intermináveis horas deitado na rede, pensando, imaginando
hipóteses, chegando a questionar se não seria alguma filha ilegítima, que eu
não sabia existir, retornando.
Anos
depois escrevi uma novela, “O velho de
novo”, mostrando todas as coincidências do encontro, como se, mais que
necessário, fosse obrigatório.
Estranho
é que os sentimentos eram confusos, engalfinhando-se em mim um pai e um amante,
rivais e críticos, ambos policiando a estratégia do outro, enfrentando-se numa
luta silenciosa e feroz, dolorida.
E
principiei o assédio, da maneira mais primária possível, buscando mostrá-la uma
realidade que não conhecia.
E,
por instinto, sem planejamento ou premeditação, comecei a inventar desculpas
que tinha coisas a resolver no bairro em que ela mora, acompanhando-a na
condução.
Percebendo
que a blindagem estava se tornando vulnerável, convidei-a a conhecer o Jardim
Botânico.
Relutou
muito, e o convencimento só veio na terceira tentativa, assim mesmo na condição
de simples amigos.
Não
abria mão do respeito ao marido, às minhas filhas (suas colegas de
adolescência) e à minha mulher.
Teria
sido mais fácil eu vender geladeiras a esquimós ou areia a beduínos.
E
fomos ao Jardim Botânico.
Não
rolou nada, nem nas intenções nem nas palavras, comigo desarvorado, sem saber
ainda se a adotava como filha ou tomava como mulher, limitando-me a comentários
sobre a flora, principalmente a anatomia vegetal.
V
Pouco afeito a festas, meus aniversários tiveram
sempre a sobriedade de quase anonimato, embora, por motivos outros, ficassem
sempre marcados nos calendários de todos.
As
eleições foram sempre um dia depois deles. A Igreja Católica escolheu o dia em
que nasci para comemorar o santo dia dos Santos Anjos da Guarda, sem esquecer
das duas explosões nos paióis do exército, em Deodoro.
Ocorre
que uma neta se apresentou a nós quarenta e seis anos e quatro dias depois de
mim, de maneira que, filha de mãe festeira, nos aglutinaram, eu e a neta, em
mesma data para as festas, comigo sempre mascando a estranheza de tudo e de
todos, louco para fazer-se o silêncio logo, enquanto ela rogava aos céus o
prolongamento do caos doméstico por toda a eternidade.
Hoje
não é diferente, os parentes chegando, os amigos chegando, os amigos dos amigos
chegando, os funcionários da escola chegando e... Ela, garça morena nas marés
dos sonhos inundando os meus olhos assustados para não traírem-se e me
entregarem na bandeja: apaixonado.
Sempre
tive o cuidado, o meticuloso e quase cirúrgico cuidado de não misturar família
e aventuras, fossem de ordem sexual, sentimental, política ou profissional, com
a família apartada de tudo o que não fosse a família, hoje em festa,
rendendo-me homenagem.
Olho-a
apoiada na coluna do salão, cercada de amigas, preocupada com filho e sobrinho,
e olho para Jocasta, a mulata, orgulhosa no afã de servir a todos, devotada
anfitriã, cuidando para que nada fuja à impecabilidade, uma filha ou outra, a
nora, ajudando.
Não
sinto remorsos nem complexos. Não somos amantes, talvez nem amigos, só simples
colegas de trabalho e longa conversa no Jardim Botânico, o trivial científico,
sem ousadias, no mais estrito e comedido respeito mútuo.
Os
muros de proteção que ergui em torno da família permanecem sólidos e incólumes,
separando-a das ruas e dos meus relacionamentos, e principio a me perceber
corpo estranho ali, incomodado, louco para a festa terminar.
Aperto o cerco e marcamos encontro. Não rola nada
ainda, ela avessa, alegando marido, nunca fez isso, minhas filhas, minha
mulher, o filho dela, a mãe... O mundo todo conspirando contra minhas intenções
de não mais sentindo-se pai, mas homem mesmo, disposto à conquista, ainda que
muito difícil, para mais incentivar, delicioso desafio.
Percebo
que também já está envolvida, realizando prodígios de doce cinismo para me
esconder os indesejados desejados sentimentos, fazendo-se de tonta para
esconder de todos e até dela mesmo.
À
mãe dirá que “estou apaixonada, e agora?”,
em confidência mesclada de felicidade e medo, muito assustada.
Na
casa da amiga que a apresentou na escola se debulhará em lágrimas: “ele casado, eu casada, as filhas minha
amigas, não posso fazer isso com meu marido, não merece, nunca fiz, a mulher
dele tão distinta, ele um senhor já... O que é que eu faço, meu Deus?”, a
sentença já lavrada, sem recursos cabíveis, decretada acima das nossas vontades
e determinações.
Se
alheio estava à vida, solto, orbitando os meus próprios pensamentos, longe da
escola, do rádio, sindicato, amigos, parentes, trancado em mim mesmo
concentrado, em prenúncio de coisa nova e possivelmente definitiva, talvez a
morte, como cogitaram mulher, filhos e irmãos, mais alheio fiquei, agora não
mais solto, livre, mas enredado nos meus próprios sentimentos, desmedidos,
avassaladores, sem juízo e sem controle possível.
E
sem nunca ter me pensado tão passional, anulei raciocínio e razão, tornando-me
só sorrisos e apreensão. Plagiando o poeta russo*, todo e só coração.
Preocupo-me
com Jocasta, a mulata que comecei a matar em meados do século passado. Não
suportará o impacto de uma separação.
*Maiakowsky.
VI
Estou no campus da Universidade Rural.
Já
caminhei pelos corredores, pelos diversos prédios e pavilhões, mostrei-lhe a
biblioteca imensa, as salas onde estudei, dividindo os meus sonhos com ela, em
atmosfera de enlevo e encantamento.
Agora
estamos sentados na grama, no gramado próximo ao horto, e, inesperadamente, sem
nenhuma premeditação, o primeiro, desajeitado, rápido beijo.
Não
será filha nem colega de trabalho, menos conhecida ou amiga, mas a mulher
antítese de tudo o que planejei, uma explosão de juventude e sonhos que pensei
perdidos bem antes de agora, em plena pré terceira idade.
Não
há remorsos pelos nossos parceiros em casa, preocupação com as línguas alheias,
satisfações a serem dadas ao mundo porque o mundo todo agora se esgota em nós
dois sentados na grama, adolescentes de corpos envelhecidos redescobrindo-se.
Mais
adiante vou escrever um poema em prosa.
Parêntesis:
nunca me conformei com essa classificação!
Não
seria melhor prosa poética ou poesia em prosa? Sei não.
Então
tá: mais adiante vou escrever um poema em prosa:
“EU TE AMARIA
Eu
te amaria como o mar, avassalador e total, capaz de gerar em si a vida,
lambendo com a minha língua de sal os teus litorais morenos.
Não,
não te amaria como o mar. Seria uma presença pegajosa e inconstante, feita em
ondas de beijos rápidos nas calmarias e mais rápidos nos temporais.
Não,
eu não te amaria como o mar.
Amaria
como o vento, sempre presente, arejando, penetrando teus cabelos e arrepiando
teus pelos, enxugando as lágrimas e o suor, as gotículas que sucedem os banhos,
delicados e tépidos.
Não,
não te amaria como o vento. E se a tempestade me mudasse o humor e eu te
assustasse e te agredisse com a minha força e o meu som te isolando atrás das
vidraças, com medo de mim? E se me fizesse ausente nas tardes mornas ou frio no
inverno?
Não,
eu não te amaria como o vento.
Amaria,
agora sim, como o sol, em luz e calor, corando a tua pele macia e obrigando as
flores ao desabrochar em formas, perfumes e cores.
Isso,
isso sim, eu te amaria como o sol, único, mas o bastante, o suficiente, capaz
de sustentar tudo e direcionar o vento e iluminar o mar e clarear os teus
caminhos.
Mas...
Pensando bem, eu não te amaria como o sol.
Como
eu conseguiria te deixar só por noites inteiras e me fazer distante e ausente e
alheio, permitindo que a ti assediasse o silêncio e a escuridão?
E
se nuvens negras de temporais nos isolasse e me condenasse a brilhar para
ninguém, anônimo e inútil no espaço?
Não,
definitivamente eu não te amaria como o sol.
Eu
te amaria... Não! Tenha a certeza de que eu não te amaria.
Não
se pode amaria quando se ama.
E
eu te amo.”
Mas
só mais adiante. Na fase de paquera o meu cartão de visitas foi
“SONHO
Tal
como um vitral
Teu
corpo explode
Em
cores e transparências
No
instante do meu espanto.
Imaterial
e efêmero
Brilha
efervescente
Nos
descaminhos da noite.
Diáfano
e volátil
Posta-se
ao meu alcance.
Então
acordo.”
Cansado da enxada, estou sentado na beira do lago,
ao lado de casa, observando as tilápias, cascudos e pacus, com a cabeça longe,
trilhando o passado, reconstituindo a história de Jocasta.
Ficou
órfã de pai menina ainda, antes da adolescência, com o irmão caçula no berço,
antecedida por uma escadinha de irmãos, seis menores que ela e dois mais
velhos, entrando na adolescência.
Forçada
às ruas, às faxinas, por nenhum estudo, para sustentar quase um orfanato, a mãe
passou a administração doméstica a ela abrindo mão das bonecas e comidinhas de
brinquedo para cuidar de bonecos de verdade e encarar fogão e vassoura de
adultos, passando a ter dos irmãos, para sempre, a gratidão e a reverência de
quase mãe.
Quantas
vezes tive que esperá-la sentado na varanda ou na poltrona da sala porque
estava dando janta a um , banho no outro, arrumando ainda outro para ir à
escola, esmerada quase mãe escondida atrás dos olhinhos infantis, dos gestos
menina reclamando vigilância e atenção também.
Compulsoriamente
forçada à maturidade, ficou alguns anos à minha frente, bem mais madura, quase
cometendo uma adoção.
E
nos amávamos com a pureza das crianças e a intensidade dos prontos para a vida,
como se senhores de nós e com força suficiente para dar provimento ao que
viria.
Contrariando
as duas famílias, a minha e a dela, e aos nossos próprios planos, antecipamos o
casamento, com nossa filha mais velha presente, secreta dama de honra forçando
a barriguinha ainda só ensaiada.
E
vivemos de puro amor, numa intensidade indescritível, apartados do mundo lá
fora, comendo, bebendo, dormindo, respirando um ao outro, em pobreza
franciscana apoiada nos meus biscates e providencial ajuda dos meus pais, dos
meus avós e até da mãe dela em partilha com os outros filhos.
Há
nostalgia e saudade, um vazio cósmico em mim observando as tilápias, cascudos e
pacus, quando sou interrompido por sua voz:
“ei, homem, acorda pra vida. O almoço está pronto!”
Entro
e acaricio seu ombro.
Ela
sorri: “está com remorso de quê? O que é
que eu não posso saber? Vai tomar banho que você está imundo, mas vê se não
demora que não estou a fim de esquentar comida!”
É. Aprendemos a
nos adivinhar em cada gesto, em cada olhar, no ritmo de nossas respirações.
VII
Os telefonemas se sucedem agora numa quase
continuidade sem fim, a necessidade de estar juntos, ainda que intermediados
pela prestadora de serviços telefônicos, o tempo todo: “bom dia amor, sou eu”, “estou indo dormir, amor, até amanhã”,
aquela voz já parte de mim enamorado, alheio e aéreo, reduzido aos instintos
mais primários, longe de qualquer coisa que não fosse o seu corpo, seu olhar de
brilho e encanto se derramando nos dias.
Jocasta
desconfiada, optando pela pior das táticas de reconquista e competição, o
sufoco, inquirindo permanentemente “o que
está havendo, você está diferente”, assediando, marcando sob pressão,
vasculhando meu olhar, meus gestos, adivinhando os poemas que escondo numa
aflição de mãe a cata do filho que não está.
Irmano
irritação e gratidão por passado de felicidade, a família bem constituída,
patrimônio comum, construído juntos que se não grande, o bastante para nunca
mais voltarmos a comer arroz cozido na água e sal com rodelas de tomates crus e
mais nada, uma vez por dia, refeição única, um copo d’água do filtro de barro
por sobremesa, depois a minha ausência diuturna palmilhando os caminhos do
mundo, garimpando o que trazer para casa, ela mãe e pai, governanta e vigia, “espera só o teu pai chegar, ele vai
conversar contigo...”
Agora
desarquivo a estante da libido, mergulho em meus hormônios e arrolo o
inventário das conquistas, rostos, coxas, sexos em flashes rápidos, e concluo
que nunca a traí, deixando-me só me emprestar por curto espaço, dando trâmite
aos mecanismos da insaciabilidade que me obrigou a transpor todos os muros, a
ultrapassar todos os limites, a romper com todas as convenções, contrariando o
esperado.
Coisa
de pele, de hormônios. Não mais.
A
traição se dá agora porque não posso mais me dar.
Não
me pertenço mais, não posso dá-la o que já não é meu.
A situação está perigosa, Jocasta em permanentes
ameaças: “vou acabar com a sua raça”,
“se não for meu não vai ser de mais
ninguém”, e bem sei que em momento de destempero será capaz de dar a mais
egoísta das soluções ao problema.
Se
me preocupo aqui, tateando paciência e consolo, preocupo-me lá, semeando a luz
da esperança: calma que tudo vai se ajeitar!
A
informação, calcada em observações adolescentes, exagerada pela turma do contra
empenhada em reduzir a cinzas a tormentosa história prestes a início, dá conta
que o marido resolvia as suas diferenças alimentando-se na violência,
drogando-se, no currículo contando hospedagem na penitenciária.
Administro
agora todos os ingredientes de uma tragédia, impedindo que, próximos, se
misturem, num turbilhão de sentimentos antagônicos e contraditórios mastigando
os meus dias.
Convivem
em mim um adolescente enamorado, dono de ferramentas capazes de permitir a
caminhada para o futuro; um adulto desatando os laços da teia que criou; um
ancião passivo e impotente assistindo a carruagem desenfreada, desfiladeiro
abaixo, e sem forças para puxar as rédeas.
Envelheço
horas a cada minuto. Morro-me só, sem nem mesmo um confidente, para mais doer.
VIII
Retomo agora todos os caminhos do meu passado, a
morena ao lado, encantada, descobrindo um mundo novo, inimaginado.
Cicerono-a
por galerias e museus, parques públicos, palmilhando-os como se fosse a
primeira vez, meus olhos descobrindo quinas, cantos, ângulos, detalhes até
então não percebidos porque agora vistos com olhos novos, conectados não à
mente, mas ao coração acelerado, anunciando que a felicidade é possível.
Redescubro-me
e, homem novo, é tudo diferente e ainda a ser vivido.
Mas
a vida real me espera e me encontra a cada vez que digo a ela “até amanhã”.
Entro
em casa e é como se eu não fosse mais daquele lugar, as flores que semeei já
saudosas da minha presença constante, a cadelinha de estimação mais afável e
fiel, pressentindo o adeus, e o vazio imenso de um homem partido, com parte
plantada aqui e parte já longe, apartado de tudo o que foi parte dele um dia.
Há
nostalgia pelo que foi, dor pelo que é, esperança pelo que poderá ser, o
remorso antecipado a cada voz de filho, sorriso de neto, cumprimento de
vizinho.
Não
há mais como esconder, minha cara uma declaração pública de coisa nova e
arrebatadora, com o brilho dos que se encontraram em outro e em outro
entenderam que sós eram menos que um.
Minha
filha me cerca na calçada: “pai, porque
você não se separa da minha mãe? A gente não vai mudar com você. É melhor que
esse sofrimento de vocês.”
Calo-me.
Como dizer-lhe que há em mim um mundo de conceitos e preconceitos resistindo à
violação? Como confessar-lhe o meu medo da fragilidade da mãe apontando
iniciativas e atitudes que não ouso imaginar? Como pronunciar sua mãe não vive
sem mim, sem que ela não ouça só presunção e vaidade? Como fazê-la entender que
há imensa gratidão, profundo carinho, reconhecimento desmedido ancorando-me
ainda ali?
Horas
depois outro filho a repetir a pergunta.
A
este pouco dizer: “meta-se com a sua vida
porque da minha cuido eu.”
Por
fim o mais sensato e equilibrado: “pai,
eu queria conversar com o senhor. Eu nunca me meti em sua vida, nunca dei
opinião... Eu respeito muito o senhor...”
Hesita,
hesita... Procurando palavras.
“Vai direto ao assunto, rapaz, o que é que
está pegando?”
“Essa mulher, pai. Eu nunca me preocupei com
as suas aventuras e até sacaneava.
A C. era mais nova
que eu e eu a chamava de mamãe, só prá sacanear, achando engraçado, mas agora é
sério, meu pai, você está mudado.
Agora não é só mais
uma comidinha não, pai, vai dar merda.
Escuta o que estou
dizendo, pai: vai dar merda!
Ou o senhor se separa
da minha mãe e assume essa mulher ou dispensa a mulher.
O senhor não vai ser
o primeiro do mundo e a gente vai ter que entender isso, o senhor vai continuar
sendo o nosso pai.
O senhor só não vai é
conseguir ficar com as duas. Minha mãe está cabreira, desconfiada... Dá um
jeito nisso, acaba com essa situação, pai.
Vai por mim...”
Ainda
não sei, mas vou lastimar pelo resto dos meus dias esse dia, a oportunidade
perdida, o momento exato em que a solução surgiu, sugerida por meus próprios
filhos, e não percebi.
Hoje temos um encontro. Será próximo a uma praia,
e passearemos pelo píer, conversando, fazendo planos de felicidade incontida
para sempre, os dois sem acreditar no que falam porque nas algemas de
compromissos familiares, mulher e marido pressionando cada vez mais, sufocando,
encurralando, analisando cada gesto e intenção.
O
passeio terminará em um banquinho espremido entre a secular igrejinha, uma das
primeiras construídas pelos colonizadores, não os de agora ou os que os
antecederam, mas os primeiros, os portugueses e seus bacamartes de extirpar
índios, as caravelas lotadas de riquezas levadas, os nossos irmãos ibéricos, e
o mar, o vasto mar, do tamanho do que me inunda e transborda.
Marcamos
às nove, nove da manhã. Hoje é feriado escolar.
Nove
e cinco, nove e dez.
Por
que se atrasam as mulheres, sempre com justificativas injustificáveis para nós,
homens plantados na espera, impaciência e irritação amenizadas quando chegam
disfarçadas em seus cosméticos e olhares de desculpe-me?
Nove
e vinte.
Não
é possível que tenha trocado de lugar ou de hora, a tonta. Será que entendeu
nove e meia? É aguardar.
Nove
e vinte e cinco, nove e meia, nove e quarenta...
Nove
e meia é hora quebrada, deve ter entendido dez, a impaciência virando raiva, a
raiva virando apreensão: será que aconteceu alguma coisa errada?
Dez
horas, dez e cinco...
Não
entendeu errada a hora, foi o local, entendeu errado o local, só pode ser.
Se
a estou esperando até agora, ela deve estar em algum canto me esperando também.
É procurar pelo bairro, a cabeça selecionando os locais mais prováveis,
percorridos um a um, e ela em nenhum.
Agora
é percorrer os improváveis, e ela não estará em nenhum deles.
E
se já chegou lá onde eu estava? Eu não deveria ter saído de lá.
Dez
e quarenta.
Existe uma sensação inexplicável para os
incrédulos, improvável para a ciência e falsa para os céticos, a que põe em
contato dois que se amam.
É
a mãe que a quilômetros sente o filho em perigo, o filho que em saudade
repentina e inexplicável visita a mãe e a encontra enferma, o traído que sem
evidências intui e passa a procurar, até encontrar.
Isso.
E é isso o que sinto agora, a sensação do que vai à cirurgia para amputação,
sentindo-se mutilado por antecipação.
Alguma
coisa deu errada e ela está em apuros, sendo ofendida, talvez agredida
fisicamente ou, pior, já memória absoluta tateando o corpo, buscando-o nos
caminhos do nunca mais.
E
saio andando, perdido de mim mesmo, sentindo a nuca latejar, o peito em
palpitações sem ritmo, meio tonto.
Estou
agora no píer e a visão se turva, reduzindo-se a pontos de luz boiando,
reflexos do sol no mar.
As
palmeiras tornaram-se manchas escuras e preocupam-me as pessoas. Daqui a pouco
pensarão que estou bêbedo, provavelmente drogado, inocentes de que talvez eu
esteja morrendo.
Decido
ir à casa dela, e pouco importa o marido, se discutiremos, trocaremos
impropérios, socos ou talvez nos apartemos em caminhos opostos, à delegacia, ao
necrotério.
Preciso
vê-la, atestar com os meus próprios olhos que está intacta, incólume, o
encontro de hoje só adiado.
Sento-me
na pedra, um tanto refeito, e agora o que me nubla os olhos são as lágrimas.
IX
Como dizer adeus a um braço se, siameses, nasceram
juntos e juntos complementam-se, como se um só? Como dizer a uma das pernas
“vá”, se sozinha estará impossibilitada de prosseguir? Como abrir mão de um
órgão sem impor aos outros a falência de todo o organismo?
Não
tenho como sair, mas tenho que sair.
Eu
a descobri irmã, alma gêmea, metade da laranja, qualquer lugar comum para
descrever alguém de presença visceral, mais que necessária, mas assexuada, de
encantos anônimos aos meus olhos, como planta de floração infinitamente bela
num deserto, atestando o belo para ninguém.
Amo-a
de amor infinito, o mesmo nascido longe, na adolescência; adolescido na fase
adulta, e agora... Quando se pensa adulto na velhice, modifica-se.
Pela
primeira vez na vida eu a estou traindo e o remorso da traição é o remorso de
pai que mata filho por engano, purgando por dor que não procurou.
A
educação, cristã, casamento é para sempre. O exemplo dos meus pais, guerra de
armistícios ocasionais, mas até que a morte os separe, ou os alivie. As minhas
críticas à minha irmã, na separação. A crítica ao meu filho, à minha filha, a
todos os que se separaram, em cobrança permanente dentro de mim: você também?
Como
vencer conceitos, preconceitos, pudores se me vejo agora com os sentimentos em
delito? Como rasgar a cartilha pela qual soletrei sempre, e continuar impune,
sem saber se já sei ler? Como me aventurar neste mar agitado abrindo mão do
barco que me garantiu todos os portos pretendidos?
Mas
tenho que ir, sob pena de tornar-me dois, antagônicos e inimigos, em duelo
permanente no mais íntimo, sem pausa e sem descanso.
“Te
esperei por mais de duas horas, passei mal, quase enlouqueci...”
“Calma que vou te
contar. Falei com o meu marido que ia fazer uns trabalhos na casa de uma amiga,
ele disse que ia trabalhar e não foi, ficou escondido debaixo da escada.
Desci a rua e quando
ia pegar o ônibus para te encontrar ele me pegou pelo braço: vai aonde? Me
levou para casa e foi uma discussão danada, quase apanhei.”
“Temos que tomar uma
decisão, a situação está cada vez mais complicada. Imagina a humilhação, o
estado de espírito do cara, ficar escondido para dar o bote na mulher... Lá em
casa a Jocasta na mesma situação, tentando pegar telefonemas seus na
extensão...
A gente pode pagar um
preço muito caro por isso. Daqui a pouco um dos dois comete uma loucura. Temos
que tomar uma decisão, e não dá mais para demorar.”
X
O telefone tocou mais cedo hoje, ela, e relaxo,
pronto ao costumeiro “sou eu. Você dormiu
bem? Bom dia, amor”, mas desta vez as palavras surgem num borbotão,
rápidas, atropeladas, quase gritadas, como as de um orador no microfone: “sou uma mulher livre, amor!”
“O quê?”
“Isso mesmo que você
ouviu, o meu marido foi embora!”
“Por quê, meu Deus? O que foi que houve?
“Eu falei a verdade
pra ele. Não escondi nada.”
“E ele, aceitou assim
na boa, sem nenhuma reação?”
“É papo longo. Depois
a gente conversa.”
Salvo
o que estava digitado, tomo um café e acendo o cigarro, surpreendido pelo que é
capaz a fragilidade apaixonada, e resolvo entrar em casa, sentar na rede e
repassar o que ouvi, ordenar o caos estabelecido em mim, ver o que farei
doravante.
“Que cara é essa? Você está com uma cara
assustada... Quem telefonou?”
“Um colega da rádio, o fulano. Quer que eu
grave umas músicas pra ele. Esses caras são engraçados, ligam pra pedir
gravações, textos de comerciais, e não falam em dinheiro. Por onde
passo é pra adotar gente...”, menti, Jocasta muito desconfiada.
“Você está mentindo, a sua cara está muito
esquisita...”
“Iiiiiiiii! Você
quando cisma com uma coisa... Deve ser porque estou inspirado, estou no meio de
um poema.”
“Espero que sim. Eu
te conheço, já deve estar aprontando alguma.”
Faço um muxoxo e
vou à rede, meu oráculo, onde destilo crises existenciais, tentando domar o
animal que insiste em cada um de nós, impondo os seus instintos sobre nossas
razões.
Não
é mais uma mulher comprometida. Rompeu a relação de muitos anos, desfez o lar,
vulnerabilizou-se, criou argumentação para línguas desocupadas... Na maior e
mais completa prova dos próprios sentimentos, confiante.
Não
sei o que fazer, Jocasta calada, desconfiada, curvada sobre a vassoura,
varrendo a sala.
Preciso
varrer o que me sobra, arrumar o que me falta, faxinar essa minha vida que anda
tão suja!
Não
dá mais para insistir na tática da protelação, na estratégia de deixar que as
coisas se arranjem por si mesmas, no se recusar sujeito e eixo e assistir a
história rolando independente, sem intervenções e direcionamentos.
Seja
qual for o final, cabe a mim conduzir. Para o êxito ou para o fracasso.
Amanhã
vou recebê-la na escola com o sorriso aliviado do que não cobiça coisa alheia,
não divide o que não lhe pertence, induzindo a erro justamente a quem mais
deseja certa.
E
como uma criança alheia à sensatez dos adultos, irei à sua casa, sem me
importar se o marido pode retornar para pegar algum objeto esquecido, ou tentar
reatar, sentindo-se lembrado ainda ali, e encontrar homem novo menos de vinte e
quatro horas depois, na própria cama ainda quente do seu corpo, os seus odores
em tudo, atestando que mal foi, quase presente ainda, já não existe, pronto a
se impor ou se vingar, ultrajado, talvez provocando viaturas policiais e
rabecões, com justiça, pela ótica masculina, pouco humanos os homens nas
questões do sexo.
Os
cães urinam sobre a urina dos seus competidores, impondo o próprio odor e o
poder, os homens deitam os próprios corpos sobre os odores dos competidores, a
diferença só na capacidade de mascarar as intenções em teorias pretensamente
racionais.
E
menos estarei atento à imagem dela, mal saiu um ontem e outro desfralda a
bandeira da posse na sacada, na janela, atestando aqui mora uma leviana, uma
fútil que troca casacos, calcinhas e maridos em todos os dias.
A
nada disso estarei atento porque nem a mim mesmo desarvorado, preso nos palpos
dos próprios sentimentos, onde mais não conta senão ela já parte de mim, agora
inteira.
Conversarei
com minha filha, “vocês não estão
conseguindo mais esconder”, “até agora não ouvi nenhum comentário, nenhuma
fofoca porque ninguém tem prova, mas que devem estar comentando, devem. São
discretos porque não ousariam com o senhor, têm medo da represália, mas está
ridículo isso”, “é questão de tempo minha mãe saber e você conhece a minha
mãe”, “você está impondo a humilhação à minha mãe e mudando a sua própria
imagem, está expondo a mulher que você diz gostar, isso não é certo, pai, você
tem que dar uma solução, ninguém pode fazer nada, só o senhor”, “o melhor é ela
parar de trabalhar na escola, a gente tem que demitir antes de um escândalo”.
Demiti-la?
Sim, isso é decisão antiga e fato já consumado em minha cabeça, mas como?
Logo
mais, como faço em todos os dias agora, irei a casa dela para suspirar o ar
fresco do alívio.
Ela
estará em pé, na pia, lavando louça, a carinha preocupada: “me ensina como escrevo uma carta de demissão, não vou continuar na
escola”.
Surpreso,
embora aliviado, questionarei: “o que é
que houve?”
“Não dá mais para eu continuar lá. Não tenho
mais como olhar as suas filhas, cruzar com a sua mulher. A intrusa lá sou eu,
estou me sentindo mal. Não tenho o direito de afrontá-las assim. Inventa um
motivo que vou botar na carta”...
“Não precisa escrever carta nenhuma. Eu vou
demiti-la normalmente, vou dar todos os seus direitos. Não considere favor ou
privilégio. Você não está saindo por incompetência, irresponsabilidade ou corte
na folha de pagamentos. Não tivéssemos nos apaixonado e você continuaria lá,
não pode ser punida por causa dos sentimentos. Vou demiti-la normalmente.”
E assim será.
XI
Agora alterno a minha casa e a casa dela.
Melhor
dizendo: agora alterno a casa dela e a casa de Jocasta, que já não é a minha,
biblioteca, discoteca, atelier, escritório, estúdio de som, salão de festas...
Todos
os motivos de orgulho e ocupação atestando uma vida inteira de luta, começada
lá na feira, já sem valor porque belo corpo sem alma, oásis sem água, praia sem
sol.
Em
uma noite colchão ortopédico em cama enorme, suíte de vinte e quatro metros
quadrados, ar condicionado e iluminação graduável, para leitura ou penumbra.
Na
outra um lençol sobre o chão da sala, sob telhas vãs, sem televisor e sem som.
Em
um dia livros, discos, telefonemas, correspondência, compromissos, iniciativas
urgentes, decisões inadiáveis porque aos olhos alheios homem bem sucedido
apontando caminhos, fazendo-se sombra para melhor abrigar.
No
outro a ociosidade mãe dos sonhos, o menino enamorado sem saber que caminho
tomar, na sombra do que sente, sem liderança e liderados.
Num
dia a voz solta e imperativa, no outro o sussurro de olhar doce-melado
espargindo o melhor de mim mesmo, e que só encontrava quando só, e agora, pela
primeira vez, partilho.
E
se me descubro não mais que um menino é porque estou no espelho ou diante do
“senhor, bom dia”, “o que foi que o senhor falou?”, o senhor tantas vezes
ouvido soando estranho como pássaro no aquário ou peixes na gaiola.
Não
tenho passado e não sei se terei futuro porque o presente é tão intenso e
inesperado que desaloja e subtrai tudo o mais.
No
presente nasci e no presente vou morrer.
XII
Minhas mãos tornaram-se impotentes, desconectadas
do cérebro.
Já
não pinto nem desenho, caneta e teclado, qualquer ferramenta inúteis às minhas
vontades alheias ao que me cerca, as mãos de conexões novas, ligadas ao peito
ordenando carícias, os dias, as horas, cada minuto oferenda à consumação do
momento, e o momento é dela, o momento é ela, calor, forma e cheiro me bastando
porque tudo é isso.
Mas
há Jocasta, há filhos, há netos, há funcionários, há documentos a serem
analisados, espaços em branco esperando a minha assinatura.
Há
ouvintes, correligionários, vizinhos, companheiros, irmãos, mãe me olhando,
esperando.
Aguardam
a minha voz, as minhas decisões, opiniões, aconselhamentos, presença, e sou um
só, quase nenhum aguardando vozes, decisões, aconselhamentos, presenças.
Eu
não era aquele, eu sou esse, sei agora, caminhando nos parques, bebendo do sol,
aberto à brisa matinal, vendo o nunca visto me inebriando numa febre de criança
no recreio.
Ah!
Como foram pequenas as minhas vitórias!
“O
que é que você falou pra ele?”
“A verdade: estou
apaixonada por outro!”
“Você poderia ter
feito de outra maneira, ter se afastado aos poucos... Foi uma temeridade o que
você fez. Ele poderia tê-la matado, ter dado uma surra...”
“Chegou perto. Eu não
poderia continuar nessa situação, sou mulher de um homem só, não estava
conseguindo deitar o meu corpo em uma cama e a cabeça em outra, permitir
carícias dele. Estava me dando nervoso, me fazendo mal... Dava remorso, eu
achando que estava traindo você...”
“Ele falou, falou, te
ameaçou e foi embora assim sem mais, sem cobrar nada?”
“Primeiro ele chorou
igual à criança... Olha, nesses anos todos que vivi com ele eu nunca o vi
chorar, nem quando a mãe dele morreu... Aí chamou o irmão que tem uma Kombi e
pegou as coisas dele e levou...”
“Coitado... A gente
está sendo muito cruel, muito mau, com ele e a Jocasta. Eu não queria isso,
sinceramente... Pensei que quando soubesse fosse me procurar, tentar me dar
porrada ou até me matar... Ele não te pressionou para saber quem era?”
“Ele falou que era você,
logo de cara, mas eu disse que não, que era o vendedor de uma editora, que ele
não conhecia. Foi fazer negócios na escola e conversamos, e me apaixonei. Mas
ele não acreditou e começou a falar mal de você. Quando eu te defendi ele teve
certeza.”
“Esse cara vai
aprontar alguma comigo...”
“Vai não. Ele falou
que se quisesse ele tem amigos para matar você, mas que ele não é homem
disso... Disse até que se era pra eu ser feliz... Ele só é violento para
brigar, é brigão, mas matar... Ele não é disso não... Depois propôs se tornar
meu amante, que eu ficasse com você e ele...”
“Coitado. Esse cara
gosta muito de você. O que você respondeu?”
“Que não, ora. Que eu
nunca o havia traído e da mesma maneira não ia trair você, não consigo... E
mesmo que eu fosse desonesta, leviana, que eu gostava tanto de você que a
possibilidade disso é zero. Eu não conseguiria.”
De
caráter o moço, tanto que nunca mais voltou a procurá-la, para qualquer
tentativa de reatamento ou aventura. Nem a mim, para vingar-se.
Chove muito e estou na sala, sentado, lendo
jornal, Jocasta dormindo, deitada na poltrona em frente à minha.
Interrompo
a leitura e fico olhando seu rosto, um carinho enorme tomando conta de mim, e
em flashes, sem que eu tenha tempo de
analisar, sequer pensar, retornam imagens que assisti e, pouco valorizadas na
ocasião, triviais, pesam agora: sentada diante de mim, um de cada lado da
mesinha de centro, jogando buraco por falta de alternativas, a casa pequenina e
pobre, sem rádio e sem televisor; de bermudas, resignada, toda suja, tirando a
lama do chão, depois de uma das muitas inundações no bairro em que moramos;
encolerizada pelo ciúme, muito séria, “eu
tenho pena da sua mãe, ela vai chorar muito, ainda vou te matar”, comigo
rindo da ameaça; deitada a meu lado, nua, cabeça sobre o meu braço, cansados do
de a pouco, ela: “eu queria que você
ficasse careca e barrigudo, e rouco, prá sempre”. Eu: “que maldade! Eu queria que você pesasse cento e vinte quilos e essa
berruguinha no seu nariz crescesse até ficar do tamanho de uma bola de
pingue-pongue”, seguindo-se gostosas risadas infantis, dos dois; revoltada,
correndo atrás de mim com a vassoura na mão, para bater mesmo, xingando, depois
que, distraída, na pia, levou uma baita palmada; cansada, suando em bicas, o rosto vermelho, enxada na mão, me
ajudando a capinar o quintal; possessa, com os punhos fechados, ameaçando jogar
água fervendo em meus ouvidos, quando eu estivesse dormindo, porque sujei a
roupa com guache e ela acredita ser batom; abraçada comigo, nós dois chorando
porque um filho decidiu morar com a avó; indignada contida por mim porque
queria bater numa das filhas, e mais indignada ainda porque eu estava lhe
fazendo cócegas, para distraí-la até que se acalmasse; desdobrando-se em
carinhos e cuidados por causa de uma das minhas pneumonias, atenta aos remédios
e de plantão ao lado da cama, quase nunca se afastando, como se eu estivesse
internado e fosse hora de visitas, baratinada pensando que eu ia morrer...
Há
ainda muito amor em
mim. Assexuado , é certo, mas muito, muito e desmedido amor.
E
me lembro de um poema escrito durante o nosso namoro, depois de brigarmos, uma
ferramenta de reconquista que eu me esqueceria logo, mas que ela guardou para
sempre, uma folhinha de caderno amarelada, já sem o cheiro da gotinha de
perfume que pinguei:
TEU RETRATO
Hoje vi o teu retrato.
Sobre o papel aqueles mesmos traços
Que sem sentir tive nos braços.
Foi um instante roubado da realidade,
Um misto da farsa do tempo
E da exigüidade do momento.
Por instantes senti saudades,
Transportei-me à época perdida,
Na tua face escondida.
É, hoje vi o teu retrato.
Inconsciente, busquei o teu perfume
Nas mechas encaracoladas, no negrume
Que só o teu olhar podia inspirar.
Imaginei-te toda e o açoite piorou,
Novamente à saudade a minha vontade se
curvou.
Analisei o teu queixo, depositário de beijos
onde,
Não me queixo, deixei um pedaço da vida.
Pois hoje vi o teu retrato.
Estavas tão serena, com essa boca pequena
De onde fluía natural uma palavra amiga.
Vaguei, e do éclan
mais profundo arranquei
Uma última lágrima que ainda teimava em
ficar.
Hoje vi o teu retrato.
Sentindo-me um trapo entendi:
De todo um corpo quente,
De carne e osso,
Resta agora só esse pedaço
Em humildes três por quatro.
Esse pedaço de saudade,
Esse resto de sorriso
Esse retrato.
Como
me separar, como dizer “vou embora, você não existe mais?”
É
já parte de mim, porção do meu organismo.
Faço
contas: um ano e meio de namoro, seis meses de noivado, trinta e cinco de
casamento... Dois terços da minha vida ao lado dela.
Da
feira à direção da nossa escola, juntos. Das peladas na esquina à direção do
sindicato, juntos. Da meia água menor que uma quitinete, alugada, a esta casa
de vinte e dois cômodos, juntos. Dos biscates e do artesanato a esse escorchante
desconto de Imposto de Renda na fonte, juntos... Juntos, juntos sempre. Juntos
tudo.
E
não entendo os que se divorciam saindo de casa com a naturalidade de quem sai
para comprar cigarros.
E
choro e saio de perto.
Ela
pode acordar e não terei como dizer porque choro.
XIII
Tenho que
ir, não quero. Tenho que ficar, não quero, espremido em mim mesmo, entre a cruz
e a cruz ou a espada e a espada porque já não atino na diferença entre a cruz e
a espada, inclinando-me para os dois lados, em movimento pendular que mais
desnorteia e entontece, o infiel que engana lá e cá, sem saberem que em mim não
dói menos, que também sangro.
O
amor que não tem pressa, espera, é o que se sabe correspondido.
O
amor que se sabe só tem a urgência dos afogados debatendo-se aflitos. E esses são os meus dias, consolar a
espera e amenizar a aflição, não deixar que a espera canse ou a aflição
exploda.
Agora
só um sentimento me possui, a saudade.
Lá
a saudade daqui, aqui a saudade de lá, esse sentimento de vazio e impotência diante
do daqui a pouco.
Por
muito pensei a saudade indefinível, uma experiência intransferível por
palavras, até que ouvi o xará Buarque de Holanda: “saudade é arrumar o quarto de um filho que já morreu.”
Exato,
e é isso o que sinto.
Agora caminho na praia, os pés escrevendo o meu
peso na areia, olhos no horizonte azul, banhado de sol e brisa, os cabelos
esvoaçando.
Não
tenho mulher, amante, documentos a assinar, decisões a serem tomadas, atitudes
a serem postergadas... Nem filhos, alunos, ouvintes, companheiros, parentes,
vizinhos, patrões, carteira de identidade, título de eleitor, imagem a ser
preservada, intenções, projetos, compromissos para logo mais... Nada que possa
me tirar daqui.
Agora
sou só eu, e como estou leve!
Não
sinto o corpo, não sei se estou no cassino da senilidade, optando onde apostar,
se na hipertensão, no câncer, na esclerose, Alzheimer, Parkinson... Ou no
cassino da juventude, sem apostar nada, só espiando.
Gaivotas
bordam no espaço com linhas invisíveis e borboletas amarelas tentam se passar
por sol, as flores branquinhas da minha infância em floração temporã na
restinga onde vou concluir a minha travessia, fugindo do continente onde me
deixei.
Caminho
para uma ilha onde o sol é sempre e os temporais, lenda dos que nunca beberam
na poesia.
Esse
sou eu, nu, despido de tudo o que me impuseram pensando me ajudar.
Já
não carrego o fardo das leis, normas, premissas, postulados...
Fardo
que nunca foi meu. Só tomei de empréstimo.
Não
olho pra trás, pode ser que acenem, me chamem, ofereçam algemas, alianças,
cordas, colarinhos, gravatas... E aí tudo de novo.
A
restinga é longa, um areal enorme, ornada de espuma dos dois lados e penso que
dificilmente chegarei ao fim.
A restinga que agora me conduz termina no
nunca, lá perto do jamais.
XIV
Acabou o deslumbramento que se faz obrigatório na
chegada da pessoa amada, aquelas coisinhas tão bem poetizadas pelo poetinha*.
Agora
é a minha mulher, como poderia ter sido outra qualquer das tantas que fizeram
baldeação em meus braços, mas é a mulher que amo e quero; com roupa doméstica,
palavras não escolhidas, atarefada com as coisas simples e cotidianas, como
outra mulher qualquer, mas é a mulher que amo e quero.
Na
casa dela tenho o estranho poder de não permitir que o mundo me acompanhe porta
adentro, fazendo acampamento na poltrona da sala e na minha cabeceira.
Lá
fico imune ao que me aporrinha e desgasta.
Lá
não sou eu porque eu sou o que se mostra, reduzido a conceitos, opiniões,
conselhos, posicionamentos... Todos os rótulos e embalagens que nos mascaram e
reduzem a personagens nas cabeças alheias.
Lá
me possuo, e surpreendido gosto do que tenho, a mim mesmo rendido aos meus
sentimentos, como quando caminhava o meu corpo adolescente pelas ruas baldias
no bairro em que morava.
E
descubro que a poesia não é um estado de espírito, mas um modo de vida.
Mas há Jocasta, doce irmã
encarcerada em minha memória, com quem posso passear ainda de mãos dadas por
bosques encantados, e nos banharmos em lagoas cristalinas, corpos nus e sorrisos
aleatórios, sem motivos justificáveis.
Juntos
podemos ainda escolher o presente de um filho, fazer feira, ouvir discos,
discutir a última cena da novela, sentarmo-nos à mesa para comer a tarde que se
anuncia mansa e pacífica.
Juntos,
voltarmos aos bailes, e nos acariciarmos em gratidão mútua pela existência um
do outro.
Só
não podemos as coisas do sexo porque agora irmãos, e o sexo é oração à
divindade determinada me esperando.
Pudesse
fazer o que faço nas salas de aula e passaria o apagador, reescrevendo outro
texto, mas não posso.
O
escrito está indelével, marcado a fogo, esculpido no aço.
E
choro as lágrimas dos que querem sem querer, mais doendo porque sei que as dela
são opostas, as dos que querem não querer, e dói muito, subtrai e reduz.
* N. E.: poetinha: como era chamado
na intimidade o poeta Vinícius de Moraes.
XV
Aproxima-se o natal, hora de me fantasiar de
consumidor e percorrer vitrines e bancadas, barracas e shoppings, à cata do
sorriso mais bonito escondido, disfarçado de brinquedos, roupas, bibelôs...
Qualquer coisa que me alimente o coração.
Há
filhos, noras, genros, netos, Jocasta, e agora a morena e o filho dela.
Para
evitar a costumeira ciumeira de sempre, cada um mais preocupado com o embrulho
do outro que com o seu, em vã tentativa de saber a quem mais amo, encontro
solução: um aparelho de DVD para cada um, filhos, Jocasta, minha irmã e a
morena, irrelevando os que se acham melhores e rebaixando os que se sentem
superiores.
E
não se fala mais nisso!
Para
as crianças... Ah! Para as crianças!
Não
basta vasculhar cada uma delas à cata do presente ideal, menos lhes escrutinar
os pensamentos e muito menos que as imagine brincando.
É
preciso mais, que eu sonhe e me veja brincando com os brinquedos delas, com os
brinquedos que não tive, não me deram, ainda que só em sonhos e sem queixas:
antes tarde do que nunca!
Agora
as crianças que não tive a oportunidade de fazer, mas que são minhas, porque do
mundo, como eu.
Brinquedos
mais baratos porque muitos, escondido.
Pode
ser que em casa alguém se julgue prejudicado ou transformado em credor porque
dividiu.
Finalmente
o supermercado, aquela vontade louca de poupar tempo, chegar na gerência, sacar
o cheque e ordenar “embrulha o mercado todo e põe no caminhão!”
Aí...
Janeiro, mês de caçar papagaios e descascar pepinos.
É
o mês da ressaca dos sorrisos.
Natal. A árvore no centro da copa resplandece em
mil tons, o som a toda, embrulhos espalhados em torno da árvore, a ceia com
mais do triplo do que conseguiríamos comer, mas nada mascara a tristeza comum,
de cada um e a mesma em todos, como se nos avisasse: é o último!
Fugindo
do clima, cada um saca o seu presente, passa rapidamente pela mesa, mordisca
rabanada e pernil, bebe alguma coisa e vai embora cuidar da vida, procurar a
alegria na casa do sogro, da sogra, em qualquer canto do mundo menos triste que
aqui.
Só
Adônis permanece, sacrifício por solidariedade, comigo calado,
responsabilizando-me pelo sofrimento imposto aos que amo, entre um verme e um
rato, sentindo-me nada, aquele menino humilhado, envergonhado de si mesmo.
Vai
embora, fico a sós com Jocasta: “vou
sair, dar um giro por aí.”
Já
esperava, limitando-se a “já vai procurar
alguma vagabunda?”, o pronome indefinido colocado de modo estratégico.
Definindo-o
provocaria uma explosão de cólera em mim, e isso é tudo o que não deseja.
Estratégia feminina.
Chego
à casa da morena, a minha Garça, e está tudo fechado, tudo apagado, sem nenhum
vestígio de vida, o natal ausente ali também.
A
mãe (mora no andar de baixo), avisada de que eu havia chegado, chega até mim e “eu pensei que você não viesse mais”.
Cumprimento-a,
desejo feliz natal, como se hoje fosse natal e a felicidade existisse, pelo
menos pra mim.
Pergunto
pela filha: “está dormindo. Deu meia
noite, ela me tomou a bênção e foi dormir, chorando como uma bezerra desmamada.
Quer que eu acorde?”.
“Não, deixa ela”.
Difícil
deixar de chorar diante da velha.
É
a gota, e me lastimo covarde, incapaz de jogar o carro num poste, tomar veneno,
pedir uma arma emprestada.
Se
semeio sorrisos nasce uma planta raquítica e frágil; se semeio a desgraça crio
uma floresta.
Que
maldição é essa a que me impus, meu Deus!
Amanhã
discutiremos e haverá amor bastante para que a frustração e a tristeza não
impeçam um beijo.
XVI
A semana entre o natal e o ano novo é um calvário,
os filhos me olhando com olhares acusadores, carregados de mágoas, pouco
falando, os netos ressabiados, como se tivessem ouvido algo capaz de afastá-los
de mim, pouco se aproximando, pronunciando o “bença vô” sem a convicção de
antes.
Talvez
não tenham ouvido nada, estão percebendo os pais, Jocasta cobrando dia e noite,
a cada minuto, em todos os segundos, sem parar, e mágoa também na casa e no
peito da morena.
Vivo
de uma energia vital chamada angústia.
De
angústia e pela angústia vivo, vazio para qualquer outro sentimento, sem ontem
e sem amanhã.
Pela ótica da morena, se passei o natal com a
família, o ano novo é com ela. Pela ótica da família, o meu lugar e junto
deles, no natal, no ano novo e em todos os dias.
Pela
minha ótica o meu lugar... Já não tenho lugar, vagando ao sabor dos momentos,
como o lixo que cai do navio e se entrega às marés, o acaso decidindo se praia
ou alto mar.
Navego
sem bússola, entregue à previdência da quase insanidade, desatento a mim mesmo
querendo administrar o impossível.
A
vontade agora é tomar um ônibus e partir para onde não sei, com documentos
falsificados e identidade clandestina, me empregar no emprego mais humilde, prá
começar tudo de novo.
Vontade
que só não levo à consumação porque não tenho o direito de impor esse
sofrimento à minha mãe velhinha, acreditando que estou bem e feliz, arrecadando
sorrisos para dispor na minha própria velhice.
E
chega o último dia do ano, como se para mim houvesse diferença entre último e
primeiro, qualquer um.
O
mesmo clima do natal.
Quando
me preparava para dar a mesma voltinha da semana anterior, Jocasta muito
nervosa, nos limites da inconsciência: “se
sair vai se arrepender. Vou cometer uma loucura, você não vai esquecer de hoje mais
nunca. Você não me conhece”.
E
por conhecê-la não saí.
Pensando
que eu repetiria o natal, chegando depois, a morena me esperou até três e meia,
sentada na sala, sozinha, diante da ceia.
Passo boa parte da noite e praticamente o dia
seguinte pensando, deitado na rede.
Assomam-me
todos os conceitos impostos na infância, os preconceitos adquiridos ao longo da
vida, a lembrança de todos os momentos vividos em família, cada festa, cada
parto, cada vitória, cada derrota... E decido ficar.
Preciso
de um álibi para romper com a morena, na verdade romper comigo mesmo e exilar
em definitivo qualquer possibilidade de felicidade.
Ano
novo, vida nova. É retomar o trabalho, voltar pra rádio, dar muitas aulas,
escrever, pintar, retomar as hortas, aumentar o número de animais... Preencher
cada minuto, e se algum minuto sobrar que venha mais trabalho, não pode haver
pausa para pensar.
Assim
não terei tempo de lembrar que estou triste, tentando superar-me em tudo para
alimentar a vaidade, filha bastarda e perdida, arremedo da mãe, a felicidade
substituída.
Chego
à casa dela e está muito nervosa, cobrando-me a ausência na noite anterior,
lastimando-se, ameaçando me mandar embora, frustração e raiva pondo-se como os
mais eficazes componentes dos desatinos.
Posso
ficar calado, olhando, até que ela se digne a olhar pra mim, quando sorrirei,
desarmando-a, e me aproximarei para repetir “boba, eu te amo”, impondo o
armistício, mas hoje não.
Hoje
concordo com tudo o que está falando, dando razão, inclusive quando diz que a
nossa história acabou, não deveria nem ter começado, e o melhor é terminar.
Covarde,
covarde é o que sou, traindo-a ao esconder as minhas vontades e os meus
propósitos, e não gritar “eu te amo e nada, nada pode nos separar. O nosso
encontro está escrito desde sempre”.
Covarde,
muito covarde, traindo-me em não dizer “vim para ficar, o meu lugar é aqui, é
em seus braços que quero morrer, e seu rosto a última imagem que quero levar.
Você é parte de mim e não sei me habitar parcial. Vim para dizer que não vim
visitar, estou aqui para ficar.”
Mas,
ao invés, concordo, plantando safras de remorsos e frustração, empurrando pra
ela a responsabilidade pelo rompimento.
E
vou embora partido, deixando o meu melhor pedaço, o que só descobri quando me
pensei incapaz de descobrir mais qualquer coisa.
Não
é o adeus de depois de encontros, é adeus de sepultamento, profundo e
definitivo.
XVI
Agora é o de sempre, o sorriso mascarando as
lágrimas secas e silenciosas, as piadinhas e brincadeiras constantes, ininterruptas,
para não ser flagrado em pranto, e a escrita, a pintura, o discurso, a
superação para que me sinta vivo ainda, e a corrida ao sexo porque cada orgasmo
uma viagem, o alheamento da realidade hostil e permanente passando pela janela.
Agora
o absenteísmo, a interrupção, o começar para abandonar porque nada apraz nem se
justifica senão como ocupação momentânea para manter a mente ocupada, longe de
mim mesmo sentindo-me outro.
Eu
não sou esse, eu sou o que viaja nas estrelas e cansado deita na lua,
embalando-se numa sinfonia de sabiás e bem-te-vis.
Sou
o que com as mãos arranca a seiva do chão e em preces a leva ao fruto mais
fecundo, para que o dia acorde numa explosão de luz.
O
que traz em si a chaga ungida do inconformismo, a cicatriz da rebeldia, o
cansaço dos que se imaginam próximos do sono reparador, recheado com a imagem
da mulher destinada, a que procuro em cada corpo feminino.
Sim,
eu não sou esse. Sou o que nasceu para malbaratar a própria dor, espargir
sonhos de difícil realização, edificar escombros do que já não cabe, por antigo
e de uso dos que já morreram.
O
que espia pela fresta do tempo e o que vê não pode ser dito porque longe do
shopping e não anunciado na televisão; o que se sabe tosco, mambembe, mal
acabado. Reduzido a puro instinto e sentimentos absolutos.
O
que roga e só escuta o silêncio, o que pede em vão, o que morre um pouco em
cada minuto.
O
que mente quando diz que não é esse porque o outro é quem queria ser.
Passo a tarde quieto, calado, pensativo e imagino
o que fará sem mim, e a ficha cai: tinha um marido, deixei-a só. Tinha um
emprego, trocou por sentimentos. Tinha um estabelecimento comercial, encerrou
as atividades para a dedicação integral, e agora amargura o recomeço a partir
do nada, ou da saudade, para mais esvaziar.
Se
o coração é covarde, prima pela omissão e peca pela fraqueza, a consciência
permanece atenta.
Tenho
filhas, irmãs, cunhadas, noras, netas, sobrinhas, mãe... E se fizessem isso com
elas, arrancando-lhes o pão, a fome e os dentes?
Vou
à casa dela.
Buzino
e na janela surgem duas. Uma de semblante fechado, querendo mostrar
contrariedade e resistência, e outra, com o brilho dos apaixonados no olhar. Explico o que pensei e as minhas
intenções: fazer compras que durem pelo menos três meses e mais uma quantia
bastante para as despesas do dia a dia, do gás, da luz e do que mais precisar.
Em
três meses deverá estar já reorganizada. Não estando, que me ligue, continuo
amigo.
Tomo o café de sempre
e marco para “amanhã às oito, venho te buscar de carro. Vamos ao supermercado.”
XVII
Buzino, desço do carro e já está pronta, arrumada,
perfumada, o cabelo molhado, como se prestes a mais um encontro e não ao
último, para me dar a mão e sairmos por aí ao acaso, para lugar nenhum, talvez
para dentro de nós mesmos, em uma praia de pouco movimento, ao centro cultural,
qualquer jardim ou esquina, porque seja onde for só cenário para conter o que
foi romance, tornou-se drama e poderá vir a ser tragédia.
Entramos
no carro e partimos ao supermercado.
Voltamos
calados, em prematuro luto pela morte da nossa história, um silêncio sólido,
compacto entre bolsas, e uma vontade imensa, enorme, sem medida no meu peito, a
de gritar perdão, eu não quero, mas não pode ser de outra maneira.
E
agora subir as escadas da casa dela, bolsa a bolsa, degrau a degrau, pela
última vez, minhas digitais no corrimão, para sempre, ainda que ela muito lave
porque impressas em mim.
Vamos
colocando as bolsas no chão e a mãe dela chega, agora um pouco minha mãe
também, tanto se esmerou na arte de agradar, e ficam conversando, lastimando a
minha decisão em cochichos ininteligíveis, e é hora de ir-me embora.
Reclamo
cansaço, bolsas pesadas, idas e vindas na escada... Mentira, pretexto para
ficar um pouco mais, decorando cada forma e cor, cada detalhe de cada coisa,
absorvendo cheiros para alimentar com dados a minha memória, daqui para frente
em moto contínuo, sem fim e sem descanso.
Sento-me
na poltrona, como Atlas, o peso de todo um planeta nas costas, acendo o cigarro
e ela me pergunta se quero café, “vou fazer fresquinho”.
Não
posso chorar. Ela viria me consolar, se aproximaria e fatalmente reiniciaríamos
tudo de novo.
Tenho
que me controlar.
E
sou surpreendido pela voz de Jocasta: “onde
é que o Francisco está?”
Com
uma calma que me surpreende, respondo “estou
aqui”.
“O que é que você está fazendo?”
“Estou sentado na poltrona, não está vendo?”
Não
é ironia nem deboche. É o cérebro entorpecido, anestesiado pela surpresa,
incapaz de criar desculpas, mentiras, justificativas, limitando-se a responder
o óbvio, como um robô, que só responde o que lhe diz os sentidos porque
inconsciente, incapaz de raciocinar.
Fala
ainda uma coisa ou outra que meu cérebro ou minha alma, não sei, se recusa a
registrar, não lembro, ou só lembro dos lábios pronunciando o que esqueci, e
culmina: “vamos para casa, o seu lugar é
lá”
“Vá que daqui a pouco vou”, respondo.
E
com a determinação com que subiu as escadas, desce, acompanhada de quem a
trouxe.
“Chiii! E agora?”, a mãe da morena.
“Não sei, tenho que pensar”, respondo, “o que sei é que ela cometeu um erro
tremendo. Agora muda tudo.”
Viro-me
para a morena, pálida, estática, como se fora de si: “eu posso considerar isso uma briga de família, mas você não. Houve
arrombamento do portão, invasão de domicílio, injúria, coação, constrangimento
e danos morais. Você quer ir à delegacia? Eu a levo. Quer? Não se preocupe
comigo.”
Ela
faz que não com a cabeça, e arrancando palavras do mais fundo da tristeza e da
humilhação balbucia: “deixa pra lá, é sua
mulher e seu filho”, e chora.
E
em mim não há raiva, não há ódio, nenhum sentimento transitivo, dirigido para
fora de mim, só decepção, uma tristeza de velório de mãe, os pés faltando para
continuar a caminhada.
Tenho
que ir, voltar, mas não já.
Como
afirmou o poeta*, “Se a sentença se anuncia bruta/A mão cega mais que depressa
executa/Pois que senão o coração perdoa.”
Lavrei
sentença, ela também, a hora é de execução.
Preciso
sair por aí, recolher-me num canto e ruminar o acontecido. Buscar em mim erros,
equívocos, dubiedade, contradições, vacilações, para justificá-la e municiar o
meu perdão.
Nesse
momento qualquer lugar do mundo, menos a minha casa.
Não
há equilíbrio e posso me permitir à cegueira que só vi em mim duas vezes na
vida, e não quero ver mais. O momento é de puxar as minhas próprias rédeas.
Preparo-me
para ir. Direi que vou voltar. Não posso sair assim, este não pode ser o final
da nossa história, não pode ser esta a última imagem que deixarei; no meu
íntimo alguma coisa afirmando que a história continuará por todos os séculos
dos séculos e além.
É
fazer mais uma horinha, recobrar o equilíbrio e partir, mas sou desperto por
buzina, a voz da sobrinha da morena no portão: “Francisco, o seu filho está chamando”.
* N.
E.: Fernando Pessoa, poeta português.
XVIII
Um fio de esperança: veio amenizar o dito,
contornar o feito, trazer a tranqüilidade à família, retratar-se pelos crimes
cometidos a pouco, mas não.
Abre
o porta-malas e lá estão os meus pertences, minha roupa e meus sapatos, ficando
clara a minha situação, despejado.
Um
dia, quando eu estiver só, nomeando cães, cabra e galinhas com nomes de gente,
chamando-os de filhos, para fingir a mim mesmo que não estou só, diante do
teclado e do monitor, inventariando o que calei e me recusei a dividir com
qualquer confidente, relutarei muito em não redigir o ouvido, e contar do muito
esforço feito para não me cegar pela terceira vez, de cegueira maior que as
anteriores, e matar.
Optei
por assumir uma covardia que não é minha, e envergonhado fui ao fundo de mim
mesmo buscar forças para sustentá-la.
Agora estou sentado na poltrona novamente,
mastigando tristeza, humilhação, vergonha... Em esforço supremo para transformá-las
em resignação.
A
mãe da morena aproxima-se de mim, passa a mão em minha cabeça, desce até o
rosto, e virando-se para a filha lança sentença partida de dentro, coisa de
mãe, talvez de maneira inesperada até para ela mesma: “agora você tem a obrigação moral de cuidar dele até ele ficar
velhinho, até ele morrer. Ele é sozinho agora”, o “ele é sozinho agora”
reverberando em minha cabeça, fazendo eco em cada célula do meu ser, subindo à
consciência absoluta.
Muito
séria, embebida em humilhada convicção, ela responde: “esse homem não vai mais se livrar de mim, mamãe!”
E
vai ao guarda-roupa, reorganizá-lo, para que nele caibam as minhas roupas.
Se
a literatura espírita retrata a verdade é nela que vou me buscar para me
definir: sou agora um andrajo, um espectro vagando no umbral da humilhação, com
a sensação de que esta condição vai perdurar pela eternidade.
Três dias depois o telefone toca, a morena atende:
“quero falar com o Francisco!”
“Francisco, a Jocasta no telefone, quer falar com você.”
Atendo:
“nós precisamos conversar, temos coisas a
resolver. Você está dormindo com essa mulher?”
“O que é que você acha, que sou hóspede
aqui? Claro que sim, Jocasta, mas que pergunta mais absurda!”
“A gente precisa
conversar.”
“Está bem, só não vai
ser na escola. O seu filho pode tentar repetir o que fez aqui no portão e já
estou refeito, não da separação, mas do que ele fez. Se tentar repetir não
conseguirá chegar na metade.”
“Eu não duvido!”
“Mas não duvide
mesmo! Vamos almoçar juntos, comer aquela caldeirada que você gosta. Amanhã
pego você na porta da escola.”
Falo
à morena que vou encontrar Jocasta, para conversarmos e tenho que administrar o
ciúme e a insegurança, disfarçados, mas prontos para explodirem.
XIX
Chego um pouco antes da hora marcada e vejo
esperança nos meus filhos, risonhos, principalmente Adônis, mais que torcendo,
acreditando que vamos nos acertar.
Sinto
remorsos. Não há a menor possibilidade, estou decidido.
Meu
nervoso é tanto que tenho medo de dirigir, só tocando no acelerador, pronto
para parar ao menor sinal de estar sentindo alguma coisa, ameaçando passar mal
(nervoso demais a minha pressão cai, e fico lerdo como um bêbado, com os
instintos e os reflexos diminuídos, seguindo-se dor de cabeça insuportável,
prenúncio de mais um surto da cruel enxaqueca, pronta para se hospedar por uma
semana).
Ela
procura se eximir, jogando toda a culpa no acompanhante, afirmando que não
sabia para onde estava sendo levada, e acredito. É vaidosa, não faria o que fez
com roupa de andar em casa e de sandálias havaianas. Se arrumaria primeiro.
Alega
que não fez escândalo, falou direito e baixo, o que é verdade.
Mais
alega, que não mandou as minhas roupas. Foram tomadas à revelia, inclusive
contra a vontade dela.
Pergunta
o que “essa mulher tem que eu não tinha”,
e continuo sendo sincero: nada.
Percebo
para onde ela encaminha a conversa e me antecipo: “sexualmente você não deve nada a ela. Você é muito mulher, é questão
de sentimentos. Eu te amo tanto quanto amava, quanto sempre amei, mas é diferente,
é amor de irmão, de amigo... Não depende de mim mudar isso. Se dependesse eu
mudaria, tenha a certeza.”
Chegamos
e nos sentamos à mesa, ela diz que não quer comer.
Só
agora percebo, está abatida, vem se alimentando mal. Faço chantagem: “estou com uma vontade miserável de
emburacar numa caldeirada, mas se você não comer também não comerei”.
Ela
resolve comer e come bem.
Entre
o almoço e a sobremesa, pudim de leite condensado e cocada cremosa, pergunta: “você está apaixonado por essa mulher, não
é?”
Não
respondo, limitando-me a olhá-la.
Ela
insiste, acrescentando “pode falar, não
vou me zangar”.
“Não sei. Só o tempo vai dizer. Hoje a
atração é muito grande”, menti, diante da certeza dos meus sentimentos.
“Então não há nenhuma chance pra gente?”
“Chance de quê,
Jocasta?”
“Da gente reatar.”
“Com a pessoa, o ser humano, a mãe dos meus
filhos, a amigona, companheiraça não há o que reatar porque nada foi rompido,
continua tudo igual. Mas a mulher... Eu não consigo mais te ver como mulher, Jocasta.
Você agora é minha irmã, entenda isso.”
“Eu não vou conseguir
viver sem você!”
“Deixa de ser boba. A pior dor é a da mãe
que perde um filho, e ela sobrevive, prá criar os outros. Daqui a pouco você
está de namorado novo, capaz de achar até melhor que eu. Isso passa.”
Pela
primeira vez ela sorri, um sorriso triste.
Peço
a conta, pago e o retorno é uma tortura, a estrada sem acabar nunca, ela do meu
lado, ora chorando, ora anunciando os planos futuros: fazer curso de
informática, retomar os estudos, ir para a Universidade.
“Conte comigo. Eu falei que agora sou seu
irmão. Não acredite, pague para ver, me dê a chance de mostrar.”
XX
Sexta-feira, dia de “Love’s Light”, abro o
programa e logo na primeira música, Daniela Mercury, “À Primeira Vista”, o
segundo telefonema da noite, Jocasta:
“Oi! Sou eu”
“Não diga! Como é
difícil reconhecer a sua voz!”, brinco, “o
que é que você manda?”
“Bota ‘Planeta Sonho’, do 14-Bis. Diz que é
um oferecimento meu pra você. Quero ver você apanhar.” (ela ri)
“Falôôôôuuu!”
Desliga
e fico animado, ela está se conformando, penso, e começo a procurar o disco,
todo enrolado, o telefone interrompendo a toda hora, comigo anotando recados e
títulos de músicas.
Faz
muito calor e os quiosques nas praias estão todos ligados no programa, como já
é costume, os namorados nos orelhões ou usando celulares, bebericando e
escutando músicas, pedindo e oferecendo canções, comigo falando baboseiras
românticas entre uma e outra seqüências.
Continuo
procurando, diachos, tenho certeza que trouxe o 14-Bis, onde coloquei?
Encontro,
mas a música selecionada pra hoje é “Todo Azul do Mar”. Não trouxe “Planeta
Sonho”.
Justifico
no microfone: “recebi um telefonema muito
gostoso da Dona Jocasta, mãe dos meus filhos. Ela quer ouvir e me ofereceu –
Obrigadão, Dona Jocasta – a música “Planeta Sonho”, do 14-Bis, só que eu não
trouxe. A música que vou tocar é outra, mas palavra de escoteiro que amanhã eu
toco”.
Imediatamente o
telefone: “por que essa discriminação
comigo? Você não toca porque não quer. E que conversa é essa de me chamar de
dona?...”
“Eu sempre te tratei por dona, no microfone,
porque isso agora?”
“E não é mãe dos meus
filhos não, é minha esposa”
E
bate o telefone.
Noite seguinte, sábado, uma vontade louca de
programar tudo de uma vez só, o programa inteiro, passar para o computador e ir
para casa dormir, deixar que pensem que estou na rádio (antes eu enganaria que
o telefone está avariado, sem dar linha, lógico. Desconfiai das rádios com
telefones defeituosos. O locutor faltou ou está dando volta na patroa, deduro
mesmo!).
Ameaça
de chuva, quiosques vazios, biroscas vazias, bares vazios, todo mundo em casa,
com os rádios desligados porque a novela acaba na semana que vem, está nos seus
momentos finais, no epílogo, a Globo fazendo um estrago na audiência alheia,
inclusive nas emissoras de rádio, o meu IBOPE só de traço, de poucos
telefonemas para me ocupar, sem dar a sensação que o programa de quatro horas
só durou duas.
Mas
há que se manter a prosa e o profissionalismo, seja o que Deus quiser, e abro o
programa. Vou levar no muque, ao vivo, sem gravar.
O
telefone. Tomara que seja o primeiro de muitos, penso: “Programa Love’s Light. Boa noite. Com quem estou falando?”
Jocasta:
“Oi, tudo bem?”
“Médio. Esse tempo e a porra da novela...
Hoje vou ter IBOPE de... (vou poupar o colega) Se eu continuar assim mais tarde vou inventar que estou passando mal.
Vou jogar no piloto automático e vou pra casa.”
“Pressa de ir pra
casa?”
“Deixa de ser boba. É
que estou sem saco mesmo. A sensação é de que a audiência vai ser uma merda, aí
tira o tesão, a vontade de trabalhar.”
“Trouxe a minha
música?”
“Claro. A que horas
você quer que eu a coloque?”
“Você é quem sabe.
Quero escutar de surpresa. Tchau!”
Desliga.
Os
telefonemas a longos intervalos, hiatos intermináveis ocupados pelo desânimo (o
telefone é retrato da audiência, num determinado momento, e atestado de
aceitação e desempenho do locutor, do programador. Se não tocar transforma quem
está trabalhando em mais um ouvinte).
Terminado
o terceiro ou quarto intervalo, já quase nove horas, o telefone: “Programa Love’s Light. Boa noite! Com quem
estou falando?”
“Sou eu, amor. Você
está com a voz triste, já deixou uma música trepar na outra... O que é que está
acontecendo?”
“Não estou triste
não. Estou desanimado. A audiência está uma merda. Já começou a novela?”
“Não. Vai começar
agora. Está acabando o Jornal Nacional. Você...”
“Peraí que vou trocar
a música...”
Solto
Ivete Sangalo, “A Lua que te dei”.
“Pronto. Fala, garotinha.”
“Essa música é linda.
Eu também não estou legal. Cada vez que toca uma música antiga eu fico
imaginando como era a sua vida com a Jocasta, me culpando, me sentindo mal.
Estou com um remorso...”
“Desliga o rádio,
garotinha. Vai ver a novela, depois vai dormir e pára com esses pensamentos. Foi
acima das nossas vontades, você não tem culpa. Já estou pra baixo e você ainda
vem com esses papos... Vai dormir que daqui a pouco estou em casa!”
Desligo,
mas é tarde: a partir de agora todo o resto do programa, mais da metade, será a
trilha sonora da minha vida com Jocasta, cada canção uma punhalada, uma
hemorragia de remorsos e saudades, não necessariamente dela, mas dos momentos
junto dela, quando eu conseguia sorrir e acreditava que a felicidade é
possível.
Quase
dez horas, entra “Planeta Sonho”, 14-Bis.
Mal
a música termina, o telefone, fácil adivinhar: “Lembrou de mim, viu? Obrigado.”
“Como eu vou esquecer
de você? Isso é impossível. Passei mais tempo ao seu lado que com minha mãe,
temos quatro filhos, tudo o que conseguimos foi juntos. Não existe amnésia tão
poderosa!... Eu nunca vou esquecer você.”
Desliga
sem se despedir, acredito que para evitar que eu a percebesse chorando.
Agora
quem quer chorar sou eu. Não posso, o microfone.
XXI
Confio na
morena e em nenhum momento me percebo pensando-a pensando no marido, como se
ela nunca tivesse tido um marido, mas a recíproca não é verdadeira, comigo
sendo analisado o tempo todo, tendo que me policiar o tempo todo, medir
palavras, antecipar o raciocínio dela com cara de preocupação quando me ponho
pensativo.
Jocasta
liga. Quer conversar comigo. Tem que ser na escola porque o assunto é a escola.
Chego,
entro e a escola já não me diz nada, como se de visita em estabelecimento de
colega concorrente.
Entramos
em meu ex-gabinete, agora dela, e vai direto ao assunto: “quero saber como é que fica a situação da escola, do nosso
patrimônio”.
“Como está”, respondo. “Você vai tocar a escola com as crianças
(nossos filhos), e no que vocês fizerem
não vou me meter, é problema de vocês, e continuo vivendo do aluguel do
Estado.” (o prédio onde funciona a escola, de manhã, é alugado para a
Secretaria de Educação, à tarde e à noite).
“E a casa, os terrenos, o carro, o sítio?”
“Não quero nada, já
falei. Fica tudo como está.”
“Você está com
família nova, vai dar confusão.”
“Confusão nenhuma. A
lei é bastante clara: o cônjuge só tem direito sobre os bens constituídos ou
adquiridos durante a vigência da relação, do casamento. Tudo o que temos foi
conseguido antes de eu me separar de você. A minha mulher não tem direito a
nada, ainda que eu venha a me casar com ela ou que ela ganhe o status jurídico
de cônjuge, pelo tempo de convivência. Pode ficar tranqüila. Somos casados com
comunhão universal de bens. Eu não posso dispor de nada sem a sua assinatura.
Fica fria. Porra, Jocasta, você conviveu comigo por quase quarenta anos e não
me conheceu? Você acha mesmo que sou capaz de fazer uma sacanagem com você ou
com os meninos?”
“A sua cabeça está
mudada!”
“A cabeça não, o
coração. O caráter é o mesmo, me admiro você pensar isso!”
“E se essa mulher
embarrigar? Ela é nova.”
“Pra você não muda
nada. Você tem metade do patrimônio e tenho a outra metade. Um filho meu não
tem nada a ver com a sua parte, só com a minha.”
“Como assim?”
“Vamos imaginar que
eu já tenha esse filho: você morre hoje. O meu filho não tem direito a nada. A
sua metade será dividida igualitariamente entre mim, que sou seu herdeiro
também, e cada um dos nossos quatro filhos.
Agora imagine o
contrário, que eu é que morra hoje: a sua metade está garantida, não será
tocada. Como você também é a minha herdeira, a minha metade será dividida em
seis, igualitariamente: você e cada um dos meus cinco filhos.
A genética e o amor
de pai não reconhecem papéis de cartórios. É meu filho também.”
“E como é que eu vou
tocar a escola sozinha?”
“Vamos ao cartório e
passo uma procuração a você, com amplos poderes, menos o de vender ou encerrar
as atividades da empresa. Se aparecer algum pepino que vocês não possam ou não
saibam dar conta eu chego junto. Você tem quatro filhos adultos que estão do
seu lado, esqueceu? Dois deles já ganharam experiência de administração
escolar. Não vejo motivo pra essa insegurança, além do que o nome da Esmirna
consta no Contrato Social, ela pode me substituir juridicamente, representar a
empresa.”
“Você foi rápido, já
consultou advogado.”
“Prá saber disso
precisa consultar advogado? Você sabe que não consulto advogado. Consulto
livros e redijo as minhas próprias petições, você foi sempre testemunha disso.
Me diz uma coisa:
qual é o abutre que está metendo merda em sua cabeça?
“Ninguém, é coisa da
minha cabeça mesmo.”
Assunto
encerrado, muita matéria para preencher as minhas próximas tardes.
Abomino os mercenários, os que têm os corações nos
bolsos e as que gozam com taxímetro na mesinha de cabeceira, computando a
tarifa.
Abjetos
os que avaliam sentimentos em cifras e apóiam os sentimentos nos interesses
materiais mais imediatos e mesquinhos, os que acariciam com as cabeças nos
bancos e cartórios, adormecem sobre cédulas.
Imundos
os que trafegam na materialidade e na materialidade se esgotam, porque não mais
que matéria pútrida a empestiar o transitório, o supérfluo, o que ficará.
Abomináveis
os de olho no do próximo, a auto punirem-se porque, preocupados com o que brota
na horta alheia, não reservam tempo para edificar a própria horta.
Os
generais estão quase todos mortos, na inglória morte de velhice, para quem se
pretendeu guerreiro.
Os
que aguardam a morte ainda, assistem-se de pijamas ao invés de farda, atestado
de quanto é efêmero o poder.
A
capacidade de torturar e matar de ontem é agora um fraldão todo cagado, a
tosse, as hemorróidas, uma colher de mingau dada por alguém que acreditou
inferior e agora desfralda vitalidade diante dele decrépito e quase anônimo
como os cadáveres que fabricou.
Vi
a anistia, vi a abertura, vi o parto da democracia e infantilmente me acreditei
incólume e fora de perigo.
Como
eu estava enganado!
Não
me mataram porque me sabiam próprio para castigo mais duro: foram-se, mas
diante dos meus olhos deixaram as sementes do que ambicionaram, pretenderam e
impuseram, e que agora assisto vicejando em todo o esplendor, nos shoppings,
calçadões e tribunais, dentro de cada uma de nossas próprias casas, uma gente
personalista e fria, com as almas encarceradas em cofres, pequenos generais.
Ok!
Vocês venceram, admito.
E
se há um inferno, que lá estejam todos os que fizeram da existência um ato
contábil.
Eu
os execro com todas as forças de minh’alma.
Provavelmente
um desses alçou-se conselheiro de Jocasta, sorrateiramente aproveitando-se da
fragilidade momentânea, que acredito temporária, ela logo estará a prover os
dias com as suas gostosas e francas risadas.
Mas
quem será? Qual filho, mais de um, talvez todos?
Me
recuso a caminhar nesse sentido. Isso é admitir que nunca fui pai, os meus
conselhos e exemplos contando no folclore de um sujeito estranho, talvez
engraçado, exótico, pouco ou nada levado em consideração, e isto é a falência
de um homem.
O
irmão, a quem todos disseram com o coração no bolso, a quem defendi,
sobrepondo-me à acusação, e agora vem me mostrar, não com palavras, mas em ato
extremo, que o único errado era eu?
Um
advogado que longe de corações e mentes ora pelas frias letras da lei?
Um
amigo, uma amiga?
Certamente
alguém que não me conhece, e então enveredo por outro caminho: não quer dividir
nada, não quer mexer em nada, fica tudo no zero a zero porque está de bom
tamanho.
Como
sabe que nada fiz pra mim, pra nós, cada pequena conquista emoldurada nas
mesmas afirmações: “para os nossos filhos”, “para os nossos netos”, “para a
geração seguinte”, “para testemunho de que passamos por aqui”... Ameaça
dividir, detonar tudo como pressão, chantagem.
Só
pode, o meu coração aliviado, não há mesquinhos nem ninguém perdeu a confiança
em mim, é só pressão de uma mulher apaixonada.
XXII
Agora acredito em tudo sob controle novamente, já
posso voltar a sorrir outra vez.
Se
Jocasta está preocupada com o material é porque o sentimental decresceu,
tornou-se administrável por ela, mal sabendo que não havia mudado nada, a
preocupação material não é por substituição, mas um flagelo a mais, imposto de
fora, pelos conselheiros que não partilham nem as camas, dividem-nas.
Vou comprar cigarros e quando volto encontro a
morena no telefone, calada, o rosto contraído, limitando-se a sins e nãos com a
cabeça, ocasionalmente tentando falar alguma coisa, mas sendo imediatamente
interrompida.
Tomo-me
de fúria e ciúmes, deve ser o ex-marido ou amigo comum, dela e do ex-marido,
por isso pouco está falando, a mais de cinco minutos dependurada nesta merda.
Franzo
a testa, fecho a cara e pergunto baixinho “quem
é?”.
Séria
como estava, põe a palma da mão sobre o fone, e também baixinho responde: “Jocasta”.
Ouve
por mais uns dois ou três minutos, e começa a falar, sem dar tempo à Jocasta,
exatamente como ela vinha fazendo do outro lado: “eu não tenho poder sobre o Francisco, ele é um homem livre e
independente, você melhor do que ninguém sabe. Eu não pedi pra ele ficar aqui e
também não vou mandá-lo embora. Isso é assunto de vocês, senta e conversa com
ele. Se ele quiser voltar o que é que eu posso fazer? Vou sofrer muito, mas é a
vida. Você está cobrando de mim uma coisa que não depende de mim, eu não posso
fazer nada. Eu não mando nele, Jocasta. Se você quer saber nem namorando a
gente estava mais, ele estava voltando pra casa. Voltando não, que ele não
tinha nem saído de casa, vocês é que botaram ele aqui. Eu nunca pedi a ele que
se separasse...”
Pára de falar,
ouve Jocasta, e pela primeira vez faz cara de raiva: “fui criada sem pai, trabalho desde menina, nunca precisei de homem e
também tenho patrimônio para herdar, pode tirar isso da sua cabeça. Agora com
licença que estou com a panela no fogo”.
Entendo
imediatamente a acusação do outro lado.
Ouve
ainda por um dez ou quinze segundos e desliga.
Vai
para a cozinha ver a panela e me sento na poltrona, impotente para qualquer
raciocínio. Carrego toneladas sobre as costas.
Chamo-a
e se senta em frente a mim.
“Primeiro, obrigado pela paciência, pela
tolerância... Te meti numa furada, não é?”
Ela
faz que não com a cabeça.
“Ela te ofendeu, te xingou?”
“Não, foi até muito
educada. Em nenhum momento alteou a voz, mas deu pra perceber que estava se controlando
muito pra não explodir.”
“E o que foi que ela
falou?”
“Deixa pra lá!”
“Deixa pra lá não. O
que foi que ela falou?”
“Não adianta porque você nunca vai saber. Só
me irritei quando ela falou que eu estava dando golpe. Que fortuna é essa que você
tem e me esconde?”
Não
sei, nunca saberei o dito por Jocasta.
Às
vezes penso porque foi muito humilhante e, sabedor, eu mudaria o tratamento com
ela. Talvez muito desrespeitoso, e eu fosse tomar satisfações. Ou triste o
bastante para aumentar a minha depressão. Quem sabe até se Jocasta não
descobriu alguma coisa do passado da morena, capaz de mudar a sua imagem, e foi
melhor calar?
Não
sei, e acho que vou morrer sem saber.
XXIII
Novo telefonema. Quer conversar comigo novamente,
na escola, amanhã. Irei.
Logo
que entro no gabinete, me estica uma folha de papel e mal posso acreditar no
que leio:
“Você enlouqueceu? Sabe porque você assinou
essa procuração? Para eu representá-la junto à Secretaria de Educação, por
causa do aluguel do prédio, e você cassou a procuração.
Como o Estado não
negocia com dois, só com um, você inviabilizou qualquer negociação. Eles pagam
se quiserem, quando quiserem e quanto quiserem.
Eu nem me lembrava
mais dessa porra! Sou tão desonesto que entreguei o original no Estado e a
cópia a você. Não tenho nenhuma cópia.
Alguém te levou a um
advogado, posso até imaginar quem, e um
dia vou cobrar isso a ele, e o doutor fez um dramalhão, que com esse documento
eu podia isso e aquilo... E todo mundo concluiu que sou um bandido devorador.
Mulher, eu comecei
camelô, toquei foda-se para empregos públicos, toquei foda-se pras aulas na
faculdade. Tinha um salário que vocês não vão ter nunca, e toco foda-se pra
essa escola também, mulher. Eu me garanto, não precisei começar de onde o meu
pai acabou não. Comecei do zero. É disso que está todo mundo com medo, de ter
que trabalhar?
Vou lhe fazer um
desafio já sabendo que você não vai aceitar: você está preocupada que eu lese
os seus filhos? Então vamos ao cartório agora. Vamos, nós dois, juntos, lavrar
documento abrindo mão de tudo em favor deles. Vamos passar tudo para os nomes
deles agora, dos quatro. Vamos?”
Ela faz que não
com a cabeça.
“Ué! Desconfia deles também? Só você é
honesta, mais ninguém?”
“A gente não sabe o
que se passa na cabeça dos outros. Já viu quantos filhos abandonam os pais,
deixam virar mendigos?”
“Eu vou é embora.
Presta a atenção no que vou dizer, pela última vez: não pretendo mexer em nada,
vender nada, alienar nada, dividir nada, mas se eu notar qualquer atitude de
esperteza de quem quer que seja ou se a nossa separação for litigiosa, eu vou
pegar a minha metade e vou torrar até o último centavo, na frente de vocês.
Não contrata um
advogado não. Contrata uma banca, um tribunal inteiro que estarei lá com o meu
advogado de sempre, só eu e ele, e não vou estar sozinho por que tenho que me fazer
representar por um advogado, é a lei. Mas você sabe que tudo o que estiver escrito no processo fui eu que
escrevi. Você viu, foi testemunha de que sempre foi assim, e sempre
levei. Acho vocês miudinhos ainda, aprendizes. Não tenta medir forças. Vão se
arrepender!”
Dei as costas e
saí sem me despedir das crianças.
Só
Adônis falou: “O que é que houve, pai?
“Nada. estou indo.
Tchau”
No mesmo dia Adônis me liga, pedindo que eu vá à
escola novamente.
Passo
todo o final da tarde pensando no que teria a me dizer, qual seria a intenção
dele, se não sabia da cassação da procuração e, sabedor, tentava contornar,
fazer com que a mãe voltasse atrás; se buscaria uma aproximação dela comigo,
para evitar que o negócio caminhasse para o litígio; ou estava agindo de
cupido, buscando o reatamento dos pais.
Foi
o único que durante todo o tempo confiou em mim.
Chamo
a morena: “vou começar a arrumar o sítio,
vou pra lá, ficar alternando dormir lá e aqui, passar os dias lá.”
“Por que isso agora?
Não está se sentindo bem aqui?”
“O bolso é um péssimo
conselheiro. Estão todos com os corações nos bolsos. Não vão demorar para
aprontar alguma, e o mais provável é que tentem um abandono de lar. Claro que
não vão conseguir. Foram muitas as testemunhas, muita gente viu e ouviu que
minhas roupas foram trazidas à minha revelia, o moço falou demais e alto para
que todos ouvissem. Não levam, mas quero evitar o que possa provocar o meu afastamento
deles em
definitivo. Quando colocarem os corações no lugar eu fico só
aqui. O sítio é propriedade da família. Para todos os efeitos durmo lá para
tomar conta.”
XXIV
Sexta-feira, sete e dez, já tomei banho e arrumo
os discos no estojo, dia de “Love’s Light”.
Dou
um selinho na morena, ouço as recomendações de juízo, vai estar atenta,
avisa-me, e saio para o ponto do ônibus.
Chego
vinte minutos antes do meu horário. Está rolando um programa de funk, e fico
conversando com o colega, em alvissareira afirmação: “o telefone hoje está danado, não pára”, confirmado diante de três
ou quatro telefonemas, um atrás do outro.
Vai
ao microfone: “Francisco Costa já no
pedaço. Daqui a pouco tem Love’s Light, as mais belas canções de levar pra
cama, aquele vozeirão de vem cá meu bem (imita, brincando: ‘Love’s Light’).
Lá
de fora grito para o estúdio (não sai no microfone, a distância é grande): “manda irem tirando a roupa que estou
chegando”.
Estou
bem humorado, doido para o programa começar logo, oásis na semana tensa que
tive.
Ele
ri, no microfone, e se justifica com os ouvintes: “não posso repetir o que escutei. Chega aí, professor!”
Aproximo-me.
Ele: “caramba! Quando você se perfuma
assim volta prá casa?”
Emposto
a voz, fecho-a mais ainda, e “às vezes
volto. Boa noite galera!”
“Qual é o cardápio de hoje, mestre? O que é
que vai rolar?”
“Iiiii, rapaz. Hoje tem Phill Colins, Elton
John, Jon Secada, Bee Gees...”
O
telefone toca, ele se afasta para atender, continuo falando e o percebo
cerimonioso: “um momentinho que ele
atende a senhora. Aguarda um pouquinho que ele está no microfone.”
“... Madonna. Tem também Roupa Nova,
Djavan... E vou mostrar o poetinha, Vinícius, um poema lindo, chamado Soneto de
Fidelidade: ‘De tudo ao meu amor serei atento/Antes, e com tal zelo e sempre e
tanto’, daqui a pouco inteiraço, só prá você. É o que digo sempre: eu entro com
a trilha sonora e você com o resto. E vai ser só prazer pra nós três.”
Faço
sinal para ele soltar a vinheta.
Assume
o microfone, vou ao telefone e percebo Jocasta muito nervosa: “liga daqui a pouco porque tenho menos de
cinco minutos pra programar, ainda não programei nada. Liga daqui a pouco”.
Ela bate o telefone.
Começo
a me programar: consulto a lista de músicas, insiro os primeiros discos nas
gavetas, deixo no ponto, programo as vinhetas, deixo no ponto, a gravação da
abertura do programa...”
O
colega percebe que mudei o humor, que estou irritado:
“Foi a dona polícia?”
“Federal. Federal
não, fuderal”, emendo.
O
colega se despede dos ouvintes, coloca a última música, programa os comerciais
e se despede de mim.
Normalmente
ficaria conversando comigo, ajudando a anotar oferecimentos e pedidos no
telefone, por vinte minutos, meia hora, mas diante da minha mudança de humor,
hoje, sai voado.
Olho
o cronômetro, mais doze segundos do último comercial e nove da vinheta, respiro
fundo algumas vezes, para aerar as vias aéreas superiores, e levo o dedo ao
play, para que entre a música “Going Home”, do Kenny G, prefixo do programa,
por ironia, “Voltando prá Casa”, sobre a qual coloco a minha voz.
Levo
o dedo à mesa e subo o volume de som, estrategicamente: nas residências e
estabelecimentos comerciais, nos carros, os rádios e equipamentos de som vão
“aumentar sozinhos”, chamando a atenção para o sax maravilhoso de Kenny G, e o
telefone começa a tocar. Tiro do gancho, para não atrapalhar minha
concentração. Reduzo o fundo musical a um terço da potência da minha voz, e
começo: “Hoje, sexta-feira, dia... de
fevereiro, agora oito horas e dois minutos... Boa noite!
Está começando mais
uma edição de Love’s Light.
A partir de agora e
pelas próximas quase quatro horas falaremos e tocaremos coisas que dirão fundo
no teu peito, despertando em ti o maior e o mais nobre dos sentimentos, aquele
que nos faz amar e sermos amados.
Lembrando que já está
valendo a tua participação.
Você vai ligar pra...
(dou o número da emissora) pra pedir
e oferecer canções para quem você preza, ama, admira, venera, idolatra... Que
te deixa feliz, vendo tudo azul. (nova pequena pausa)
Agora oito horas e
quase quatro minutos. Uma boa, ótima, gostosa, mais que gostosa, excelente,
maravilhosa noite prá você”
Um
dedo no play da primeira música, normalmente de trilha de novela, ligada a um
personagem que tenha sido marcante, para garantir a permanência dos rádios
ligados, e o outro no stop do Kenny. Aperto-os ao mesmo tempo, corto o
microfone. O programa começou.
Recoloco
o telefone no gancho. Imediatamente chama: “Programa
Love’s Light, boa noite!”
“Boa noite, meu
amigo. Você falou que vai botar o Roupa Nova. Qual música você vai botar?”
“Peraí, deixa eu
consultar aqui, um momentinho só... Vai ser em dose dupla, ‘Anjo’ e ‘Linda
Demais”.
“Pô, eu estava a fim
é de ouvir “Dona”
“Faz o seguinte: o
Roupa deve entrar aí por volta de nove e dez, nove e quinze. Por acaso eu
trouxe “Dona”. Pra não ficar muito em cima, lá prás onze eu toco, falou?”
“Valeu.”
“Quer oferecer prá
alguém?”
“Quero, pra minha
esposa.”
“Então passa o teu
nome e o dela”
Anoto.
“Aí, o teu programa é dez.”
“De parceria com o
Roupa Nova fica fácil. Valeu pela participação. Boa noite.”
“Boa noite”
Desligo.
Mal coloco no gancho chama de novo: “programa
Love’s Light, boa noite!”
“É disso que você gosta, de ficar se
exibindo, se mostrando. O que é que aquele babaca tinha que dizer que você está
perfumado, que tem voz de cama? É prum monte de vagabundas ligarem? Conheço
muito bem esse seu tipo, você não me engana mais...”
Esta não é a
Jocasta que conheço, há alguma coisa errada.
Não
interrompo, aguardando que dê vazão a todo o destempero, acalmando-se. Continua:
“... a sua mulher vai pagar, se vai. Já
está pagando, ouvindo um babaca dizer que o homem dela tem voz de cama,
imaginando que está sendo cantado no telefone. Ela vai passar na rua e ver as
mulheres olhando pra você com cara de quem está pensando sacanagem. Ela vai
pagar! Vai sofrer tudo o que sofri...”
“Acabou? Vai me
deixar falar agora? Você está certa, é tipo mesmo. Não passa pela sua cabeça
que era um programa funk, de garotada que não tem nada na cabeça, e ia passar
para um programa de flashes back, com músicas de dez, vinte anos atrás, de
adultos? Será que não passa pela sua cabeça que ia sair uma voz de adolescente
para entrar uma voz madura, de adulto? E que não basta apertar um botão e mudar
tudo, tem que haver uma passagem, uma modificação lenta? É tipo mesmo, porra!
Quantas vezes lhe expliquei isso? Você queria o quê, que eu criasse o clima
para a entrada de um programa romântico falando de Biologia, de política, dando
receita de bolo? Fala sério, Jocasta!”
“Não pense que me
engana com as suas desculpinhas não!”
E
desligou.
Na quarta ou quinta seqüência, quase uma hora de
programa, décimo, décimo e uns pouquinhos telefonemas depois, mais um: “programa Love’s Light. Boa noite!”
“Sou eu de novo. Liguei pra te pedir
desculpa, eu estava nervosa, não fica zangado comigo não.”
“Claro que não.
Entendeu o que eu disse? Na escola é que sai o professor de matemática e entra
o de português. Lá é só informação. Aqui a gente trabalha com sentimentos, com
a sensibilidade das pessoas, tenho que fazer o jogo. Quantas vezes você me viu sair de casa com enxaqueca e
nenhum ouvinte desconfiou que enquanto a música estava tocando eu estava com a
cabeça na água fria, no chuveiro?”
“Tá bom, vou
desligar.”
“Tchau”
Vinte, vinte e
cinco minutos depois liga de novo, sem assunto, perguntando que músicas vou
tocar, elogiando o programa...
Estranho
a falta de assunto e principalmente como está articulando as palavras, falando
lento. Preocupo-me. Será que exagerou nos calmantes?
Quase
onze horas, liga pela quarta vez. Não diz coisa com coisa: que voltou a
estudar, se converteu, é batista agora, não vai mais querer saber de homem,
homem é atraso de vida, vai me mostrar e a todo mundo que sabe administrar a
escola sozinha... Com dificuldade de pronúncia, principalmente dos fonemas
bilabiais, o que é sintoma de lábios relaxados, dopados, álcool ou
tranqüilizantes.
Sou
tomado pelo pânico. Diminuo a música e entro no ar, solicitando que um dos meus
filhos ligue pra mim com urgência. Algum colega da rádio que estivesse me ouvindo
também.
E preocupo todo mundo, o telefone pipocando sem
parar, os conhecidos querendo saber o que está acontecendo, em que podiam
ajudar, e eu os tranqüilizando: “não, é
coisa boba! Está tudo bem”, “e só um recado lá pra casa, coisa boba”...
Até
os “seguranças” do bairro: “o que é que
está pegando, professor? Estamos na área, está precisando da gente aí?”
Tranqüilizo-os
também, e minha filha liga, com voz de quem estava dormindo: “o que foi, pai, está passando mal?”
“Não. Vai lá em casa correndo. Ou a sua mãe
bebeu ou está com a cara cheia de calmantes. Ligou e não disse coisa com coisa.
Me dá o retorno. Liga de novo pra eu saber o que está acontecendo, senão não
vou conseguir terminar o programa.”
Agora
o dono da rádio no telefone: “o que é que
foi, Chico?” Explico que a minha ex-mulher está passando mal, que talvez
tenha que interromper o programa, e peço para que ele encontre alguém para me
substituir.
“A essa hora é difícil, Chico. Quem não
estiver trabalhando (eventos) está na
gandaia ou dormindo. Faz o seguinte: o piloto automático está com seis horas de
gravação programadas. Já são onze horas. Dá pra ir até às cinco, na hora que o
Lino chega pra fazer o sertanejo, dá tempo. Joga no piloto automático e vai
embora. Está com a chave da rádio? Se não estiver só encosta a porta que daqui
a pouco vou aí e fecho.
Agora
é a morena: “o que foi que houve, amor?
Está passando mal?”
“Não. É a Jocasta.
Acho que está cheia de comprimidos, mas a Minerva já ligou, já foi prá lá.
Daqui a pouco vai dar o retorno. Fica fria que ela não está mais sozinha.”
“Daqui a pouco vou
ligar de novo. Fica tranqüilo que a essa hora já acordaram o Adônis. Calma
senão daqui a pouco você está passando mal também.”
“Está bem, está bem.
Vai deitar.”
Minerva
de novo: “pai, sou eu”
“E aí?
“Está lá discutindo
com o Adônis porque ele desligou o rádio. Tomou um monte de comprimidos. Vai
dormir até amanhã de tarde. Está difícil, pai.”
“Eu sei, minha filha.
Pra todos nós. Desculpe-me ter te acordado. Como é que você soube que eu estava
chamando?”
“A dona F. está
escutando o senhor e bateu lá no portão.”
“Vai dormir, minha
filha. Que Deus te proteja.”
Foi-se
o clima. O que era romantismo virou susto e apreensão, agora raiva e remorsos.
Tiro
o fone do gancho. Não atenderei a mais ninguém hoje, vai ficar todo mundo me
perguntando o que aconteceu.
Agora
consertar a cagada no microfone, da maneira mais natural possível, para evitar
as especulações de quem não tem o que fazer, ou tem: especular a vida alheia.
Termina
a última música da sequência, entro: “primeiro
toquei Mariah Carey, Without You, sem você: depois foi a vez do Wando, Moça,
trilha sonora da novela Pecado Capital, primeira versão, e finalmente entrou
K-Ci & Jojo, All my life, toda minha vida ou minha vida toda, eu deixo você
escolher, pode ficar a vontade. Agora onze horas e doze minutos, boa noite.
Bom, gente, tivemos
um contratempo aí, e de cara quero agradecer a todos os que ligaram,
preocupados. Valeu.
É bom de vez em
quando um sustinho desses que é pra gente ver como está a audiência, todo mundo
ligadinho em mim, ‘brigadão’.
Desculpas a você que
estava aí no, sabe como é, e na hora do plá o locutor deu um susto e aí, tóim,
baixar trem de pouso que tá descendo, vai pousar... Fica chateado não, começa
tudo de novo, ela vai gostar.
Sem brincadeira,
gente: um parente ligou lá pra casa pra dizer que uma tia da minha mulher está
mal, de passagem comprada prá lá, lá onde batem continência deitados, e ninguém
atendeu ao telefone, todo mundo dormindo, então ele ligou prá cá.
Minha filha já ligou
e o recado está dado.
Fofoqueiros e
curiosos satisfeitos?
Mais um detalhe: tem
gente reclamando que o telefone só está dando ocupado. Insiste que chega a sua
vez. É o bendito vício de pedir músicas, ê audiência danada!
Só peço pra não ligar
pro meu concorrente lá na outra emissora. Ele está cansado. Deixa o rapaz continuar
dormindo em paz.”
E
solto a música.
Amanhã,
pela primeira vez em três anos, não farei o programa.
XXV
Que pode um homem em duelo com o seu destino senão
sentar-se e assistir a si mesmo, ora em vantagem, às vezes em revés, mas sempre
impotente para convencer o destino a parar com a briga?
Assim
me sinto, e o momento é de revés, de derrota anunciada, sem direito à revanche,
e aguardo porque sei o que me aguarda.
E
lembro da vozinha infantil da minha adolescência: “você não vai lembrar de nada
do que conversamos, mas vai usar as informações sempre que precisar, durante
toda a sua vida.”
Sim,
fui sempre impotente para convencer o destino a parar com a briga, mas nunca
fiquei sentado, não pude.
Era
eu quem brigava e brigando não pude sentar-me.
Por
que me sentar agora?
Chego
de supetão à escola, ninguém me espera, surpreendem-se.
“Quero conversar com a senhora”, e sério
aponto Jocasta.
Assusta-se,
e não a encontro abatida como esperava encontrar. Pelo contrário, me parece bem
senhora de si.
Entramos
no gabinete. Fecho a porta. Ela faz cara triste.
“Mantenha a mesma postura lá de fora porque
não vou entrar no seu jogo não.”
“Que jogo?”
“Mantenha a altivez, a mesma segurança que
você tinha e continua tendo.”
“Diz logo o que você quer!”
“Por que aquela palhaçada na sexta-feira?”
“Só porque eu tomei
remédio?”
“Tomar remédio todo mundo toma. Só que ficar
dopado, falar merda sem saber o que está falando, assustando todo mundo, é
outra coisa, não é tomar remédio”
“Eu queria morrer.”
“Queria morrer porra
nenhuma. Quem quer morrer não toma meia dúzia de comprimidos, Jocasta. Quem
quer morrer toma uma medida radical, não toma meia dúzia de comprimidos.
Você está fragilizada
e está chamando a atenção pra você. Tudo bem, mas faz de outro jeito. Você está
sacaneando as crianças, me sacaneando, sacaneando a sua família. Isso é certo?”
“Da próxima vez eu
vou fazer direito. Não vou tomar só comprimidos não.”
“Ah! Você está
dizendo que vai se matar?
Aí concordo com você. Você deve fazer isso
mesmo. Nossos filhos são pessoas felizes, por que continuar assim, não é? E os
nossos netinhos, tudo inocente, aí vão conhecer a morte dentro de casa,
pertinho, beleza. Agora, quem mais merece que você faça isso é a sua mãe. Você
já imaginou a dor de mãe enterrando um filho? Você já se imaginou enterrando um
dos nossos filhos? Sua mãe está lá velhinha, doente. Só enterrou três filhos
até agora. É pouco, merece passar por isso mais uma vez, não é? Quer saber duma
coisa? Você não vai se matar porra nenhuma. Você teria que ser muito covarde,
muito egoísta com as pessoas que amam você. Você está é fazendo chantagem
emocional, jogando todo mundo contra mim, e isso é sacanagem.
“Você está muito
enganado.”
“Larga de ser babaca, mulher, vai aproveitar
a vida. Você está nova, é bonita. Você é gostosa, mulher, boa de cama, mulher.
Toca um foda-se em todo mundo e vai viver a sua vida, estudar, fazer curso,
arranjar um namorado. Você tem dinheiro, mulher. Quantas queriam estar no seu
lugar?
Você não reclamou
sempre que não tinha liberdade? Agora tem e não sabe o que vai fazer com ela?
Eu não acredito.
Olha, já conversamos
sobre os meus sentimentos por você. Se essa palhaçada continuar, nem os meus
sentimentos você vai ter, só o meu desprezo.
Pensa bem no que eu
falei e vê se vale a pena, se todo mundo merece. Se você achar que merece
ninguém poderá fazer nada, e ainda vai chorar achando que podia ter feito
alguma coisa.
Quem menos se fode
num suicídio é o suicida, pensa nisso.
Vê se não conversa
com as crianças sobre esse nosso papo. Pensa direitinho, bota essa cachola pra
funcionar que de burra você não tem nada.”
Ela
começa a chorar, o olhar longe, perdido, vazio.
“Pára com isso! Você vai sair assim, as
crianças vão pensar que eu te fiz grosseria, ameacei. Pára de chorar!”
Uma
das filhas: “o que é que o senhor falou
pra minha mãe que ela está chorando?”
“Ela ouviu o que
tinha que ouvir!”
E
vou embora.
XXVI
Estou com três homens colocando um poste no sítio,
risadas, um sacaneando o outro, como sois acontecer quando três ou mais homens
se reúnem a título de qualquer coisa, e o motivo é que um está agarrado no
poste, abraçado, para que o poste não tombe, mantenha-se na vertical, e
afirmamos que está se lembrando do “negão” dele.
Súbito
Jocasta passa por nós, muito vermelha, provavelmente conseqüência da longa
caminhada até o sítio, em ritmo apressado, fala “precisamos conversar, acertar a nossa situação”, alto e agressivamente,
e entra em casa, decidida, como se esperasse encontrar mais alguém.
Fala
enrolado e a percebo cheia de comprimidos novamente. Os homens ficam calados e
disfarçam.
Certamente
pensam-na bêbada, e pela reação, como moram próximos à família da mulher de meu
filho, acredito que o meu drama familiar já tenha vazado, seja agora de domínio
público.
Entro
e com voz baixa, para não escutarem lá fora, seguro o seu braço e com energia
afirmo: “você vai ficar calada, para não
me envergonhar nem se desmoralizar. Quando eles forem embora conversamos”.
Doidos
para se livrarem da situação constrangedora, exatamente como eu, aceleram o
trabalho e, dez ou quinze minutos depois, concluem a colocação do poste.
Agradeço,
pago e entro.
Logo
que começa a falar percebo que desta vez foram mais comprimidos que da vez
anterior, e provavelmente misturou com alguma bebida alcoólica, potencializando
os efeitos do tranqüilizante, deixando-a fora de si, inconsciente.
A
depressão é imensa e pela primeira vez admito a possibilidade do suicídio, não
é só chantagem emocional.
Digo
para que se deite e ela responde que não vai usar a cama onde me deitei “com um monte de vagabundas”.
Peço que me
respeite: “aqui onde você está entram a
minha mãe, minhas irmãs, você, suas filhas e suas netas. Seria o último lugar
que eu faria de puteiro, me respeita!”
“Estou aqui para
saber como é que vai ficar a nossa situação!”
“Já conversamos sobre
isso e acho que já chegamos a um acordo, não tem volta, Jocasta, mas é melhor a
gente voltar a esse assunto em outro momento.”
“Então ‘tá’, vou
embora.”
“Vai embora nada.
Você vai ficar aqui conversando comigo até melhorar ou aparecer um dos meninos
para te pegar. Eu não vou deixar você sair assim, você não está legal.”
“Eu estou bem, e quem
é você para mandar em mim! O seu reinado acabou!”
Dirige-se para a
porta. Tento impedi-la. Desvencilha-se de maneira brusca e percebo que para
retê-la só com violência, e desisto.
Deixo
que se vá e passo a segui-la à distância, cuidando para que não me veja, preocupado
de que faça um escândalo ou saia correndo, onde chegamos, meu Deus!
Aproxima-se
uma longa ladeira, íngreme, e aumento a distância. De plano superior me verá
facilmente.
Retardo
os passos e caminho próximo à vegetação que margeia a rua.
Ela
chega ao topo e começa a descida, perco-a a de vista.
Apresso
o passo, quase correndo e não a vejo mais, imaginando se cortou caminho por
algum quintal, me viu e está escondida ou tomou caminho alternativo.
Continuo
andando, agora sem saber o que fazer, e encontro ex-mulher de um amigo.
Pergunto
se viu Jocasta, ela afirma que não, e comenta o que está acontecendo, dando-me
a certeza de que já é de domínio público a minha desgraça.
Quando
estou me despedindo, para continuar procurando, aponta o carro de Édipo. Vem
com a mulher e o filho, meu neto.
“Lá vem mais confusão”, comento.
“Cadê a minha mãe?”
Édipo traz tanta
agressividade na voz e nas palavras, ameaça tanto e com tal ímpeto que a dona
sai correndo, literalmente, gritando “ele
vai matar o pai”, “vai matar o próprio pai”.
Explico o que
está acontecendo, já desnorteado, sem iniciativa, o que acontecer com ela ou
comigo dá no mesmo, azar, pior do que está não pode ficar, o buraco é fundo,
frio, escuro e parece pra sempre.
No
interior do carro Édipo me culpa por tudo o que está acontecendo, me atribui
responsabilidades e exige solução, por pouco não exigindo que eu volte pra
casa.
“Se a sua ex-mulher ameaçasse se suicidar
você largaria a família atual e retornaria, presumo”, digo, diante da
mulher dele, que o olha, e ele nada responde, e a ficha cai nesse momento,
acalma-se.
Continuo:
“vocês têm que procurar uma clínica para
a sua mãe, interná-la. Ela ficará lá dois, três meses e retorna inteira. Do
jeito que está vai se suicidar, seja voluntária ou involuntariamente, por
overdose de tranqüilizantes.”
Como
esta é a única atitude sensata nesse momento, tenho a certeza que o recado será
dado aos irmãos e ao tio.
Encontraram-na
na Igreja Batista, orando.
XXVII
Poderiam ter procurado um psicólogo, um
psicanalista, um psiquiatra, quem sabe um padre, um pastor sério, talvez até um
experiente espírita ou mesmo um pai de santo... Qualquer um íntimo da alma
humana e seus mistérios, afim da mente humana e seus distúrbios, sensível ao
drama alheio, solidário ao sofrimento do próximo.
Mas
não. Procuraram um advogado.
E
douto nas coisas da lei, nas frias e indiferentes letras da lei, o moço os
alertou que em tratamento psiquiátrico eu poderia interditá-la e me assenhorear
dos bens, dando a eles destino de bel prazer.
Se
mais não afirmou incompetente foi porque poderia ter dito que, sentindo-se
ameaçados em seus direitos, em risco de serem lesados, poderiam entrar com
medida cautelar, imobilizando o patrimônio.
E
não buscaram ajuda psicológica para a mulher, cada vez mais próxima de um
desatino.
E a overdose veio e foi para o hospital, para o
pronto socorro, desintoxicar-se.
Tentei
de todas as maneiras, através de constantes recados, um encontro com o irmão
dela, agora mentor e conselheiro dos meus filhos, com o mesmo retorno sempre: “ele se recusa a falar com o senhor”, “ele
não quer lhe ver”, “nem tenta falar com ele que vai dar confusão”...
Provavelmente o
moço esperava uma retratação minha, que não haveria em nenhuma hipótese, ou
justificativas, desculpas... Sei lá.
O
motivo seria outro: “sua irmã tem que ser
internada já, ontem. Diante da desconfiança de todos, para eu tomar a
iniciativa tenho que tomar medidas drásticas, através da justiça ou sair
atropelando todo mundo. Não vou fazer nenhum nem outro. Estou aqui para dizer
internem. Se não houver dinheiro há patrimônio que garante. Vendemos parte. Se
deixar por conta dela o final é mais que previsível, é certo.”
Mas
por vaidade, mágoa ou pensando que ia discutir negócios, o moço não quis conversa.
XXVIII
Mais um dia de apreensão, insegurança e impotência
amanhece, e pela primeira vez percebo a morena em estado psicológico semelhante
ao meu, nervosa, fazendo o café com movimentos bruscos, a cara amarrada,
aspecto de deprimida.
Como
na véspera não tinha acontecido nada de anormal, estranho aquele comportamento:
“por que é que você está assim?”
“Você não escutou o
telefone não?”
“Não, por quê?”
“A Jocasta ligou às
duas e meia da manhã, ficou mais de meia hora no telefone.”
“E o que é que ela
queria?
“Não disse coisa com
coisa. Como sempre, falou sozinha, não me deixou falar.”
“O que é que ela
disse?”
“Amor, acho que está
na hora da gente dar um tempo, você tem que contornar isso, não vai acabar bem.
A Jocasta vai se matar.”
“Dá a sua opinião
depois, agora quero saber o que ela falou.”
“Ela estava
completamente fora de si, só fez ameaças e falou barbaridades.”
“O quê, caramba?”
“Falou que eu já
tomei o homem dela, que vou tomar o patrimônio dela, mas que eu nunca vou ser ela,
que o que eu quero é isso, ser ela, mas que não vou conseguir.
Falou que eu estou
usando você pra me dar bem na vida. Que eu quero enriquecer a suas custas, mas
que nós jamais seremos felizes. Que eu nunca vou conhecer a felicidade que foi
dela porque eu nunca vou ser ela, que não adianta tentar.”
Concluo
ser o bastante para irritar, mas não para deixar insegura a ponto de sugerir o
“dar um tempo”. Deve ter dito mais. Insisto: “você falou que ela ficou no telefone mais de meia hora. Claro que
falou mais coisas, o quê?”
A
morena hesita, hesita, como se tivesse medo de repetir: “ela falou que ninguém consegue ser feliz em cima de um cadáver, que
ela vai se matar.
Amor, eu não duvido mais disso. Ela falou
com muita convicção, está enlouquecendo. Imagina que nunca conversei com ela,
não sei o que ela pensa, como ela é, e quero ser ela, quero ser igual a ela...
Por tudo o que você me disse dela... Não bate com se matar para impedir a
felicidade de alguém... Amor você tem que fazer alguma coisa, ela está enlouquecendo...
Ela vai se matar.”
“Você sabe o que significa fazer alguma
coisa nessa altura? Significa matar o Édipo ou pelo menos colocá-lo na cadeia,
que motivos tenho, sair na porrada com o irmão dela, talvez dar porrada nas
minhas filhas, me indispor com os meus genros, e se tiver mais porrada não
duvido, encarar processos que moverão contra mim, com certeza, e voltar pra
casa, rompido com todo mundo, e viver o resto dos meus dias ouvindo lamúrias,
queixas, cobranças, e atento a uma vingança de Jocasta.
Eu não vou me curvar
a chantagens e muito menos às pressões dos meus filhos, pra viver o resto da
minha vida na condição de um vira-latas de rabo entre as pernas, humilhado,
desmoralizado. Ainda tenho dignidade, mulher!
A essa altura só uma
internação para tratamento radical, possivelmente sonoterapia, mas eles acham
que não.
Se ela se suicidar
por vontade própria, por livre arbítrio, ninguém tem culpa.
Para quem está
decidido a isso não há vigilância possível. Em um segundo atiram-se pela
janela. No quarto, enforcam-se com as roupas de cama... Não há como impedir.
Agora, se o suicídio
for involuntário, por uma overdose de tranqüilizantes ou coma etílico, aí com
certeza poderia ter sido evitado.
Se para se eximir de
culpa ou de remorsos você quer se separar, tudo bem. Mas saiba que vou alugar
uma quitinete, ou morar com a minha mãe, sair do Rio, qualquer coisa.
Eu só não volto é
para casa. Essa é a única hipótese descartada. Incogitável.
Exigir isso de mim,
depois de tudo o que já aconteceu é exigir que eu me transforme em outra
pessoa, que me despersonalize. Isso, tenha a certeza, eu não vou fazer.
Qualquer coisa, menos a submissão à chantagem e a pressões. De ninguém!
Todo mundo se separa,
porra. Dois irmãos dela se separaram, minha irmã se separou, Édipo se separou,
Esmirna se separou... Só eu é que sou propriedade inalienável, tenho dona?
Até quando vou
continuar abrindo mão dos meus sentimentos para agradar os outros? O meu filho
caçula já me deu netos, não tenho mais que abrir mão da minha felicidade para
manter a unidade da família...
Até quando vou
continuar lastimando as oportunidades de felicidade perdidas? Por que só eu
condenado a um único casamento na vida? Não bastam as cobranças que me faço,
agora vem todo mundo cobrar? Eu não sou modelo de nada, porra!
De certinho só tenho
a certeza de que não quero mais continuar casado, é um direito meu! Nunca
escolhi parceiro ou parceira pra ninguém e todo mundo palpita a quem devo comer
ou deixar de comer? Chega!
Eu não vou me submeter
a isso. Não posso e não conseguiria. Mesmo que eu quisesse.”
Resolvo ir à escola imediatamente. Encontro
Jocasta abatida, muito abatida, em profunda depressão, havia discutido com os
filhos.
Procuro
não me informar dos motivos, a hora não é de tomar partido ou emitir opiniões,
posso dividi-los, e os quero todos juntos da mãe, pelo menos nesse primeiro
momento. Passado o pesadelo me reaproximo.
Antes
que eu a chame para o gabinete, ela me chama, tranca a porta a chave:
“Essa mulher não te ama, é coisa de mulher
nova, de pele, ela está deslumbrada, você é atraente, sedutor... Amor é para
sempre, isso que ela sente não.”
“Não foram os sentimentos dela que me
separaram de você, Jocasta, foram os meus sentimentos, entenda isso.”
“Ela não vai ficar com
você pra sempre, eu sim. Você está escolhendo o caminho errado, vai morrer
sozinho, sem nem quem lhe dê a mão, uma colher de xarope. Vai gemer e ninguém
vai ouvir. Você vai morrer só e vai lembrar de mim...”
“Isso é opinião ou
praga?”
“Certeza. Você é
muito mais velho que ela. Não vai demorar muito e ela vai cansar, vai te dar um
pé na bunda. Você vai envelhecer, homem. Quando tiver dado o caldo que tinha
pra dar vai ser cuspido, abandonado.”
“Pode ser, mas vou
pagar prá ver.”
“Escuta: isso que ela
sente é só atração, coisa que toda mulher sente e foge... Você sabe contornar,
tem conversa fácil, e ela foi na sua conversa. Eu até acredito nos seus
sentimentos, mas nos dela não. É o tipo de mulher que se despe fácil...”
Irrito-me:
“não posso dizer a mesma coisa. Ela só se
despiu pra mim depois que pôs o marido na rua. Continue dando a sua opinião
sobre sentimentos porque do resto você não sabe de nada.”
“Eu vou me matar!”
“Você está sendo de
uma crueldade monstruosa. Eu tenho duas opções, você está me dando duas opções:
“voltar para casa e ser infeliz, ou não voltar e ser infeliz, porque você se
matou. É muita maldade, Jocasta!”
Extremamente
nervosa, perde o controle emocional, baixa a guarda e toca num assunto que era
tabu para nós. Reajo imediatamente: “diante
disso não há mais a menor possibilidade de retorno. Se essa mulher deixar de me
amar, me der um pé na bunda, como você falou, me cornear, qualquer coisa, eu
moro só, vou para um asilo, para debaixo de uma marquise... Eu só não volto é
pra casa.”
Ela
olha dentro dos meus olhos, um olhar duro: “eu
vou me matar! Você não vai conseguir continuar com essa mulher, não vai.”
”Você está sendo
covarde com os seus filhos, seus irmãos, sua mãe. Isso é egoísmo.”
Ela
dá de ombros: “todo mundo é egoísta.”
Insisto:
“já parou pra pensar que o mundo vai
ficar pequeno pra mim e o Édipo, que terei que matá-lo, se ele não me matar
primeiro?”
“Você sabe que você não teria coragem de
fazer isso, nem ele. É destrambelhado mas é seu filho. Com o tempo vocês se
acertam”
Continuo
insistindo: “você me disse que agora é
evangélica, não é?”
Ela
faz que sim com a cabeça.
“Então você sabe qual é o destino dos
suicidas. É no inferno que você pretende investir, é isso o que você quer?”
Cala-se,
como se estivesse com medo, titubeia, e insisto: “você sabe o que penso sobre isso, você também teve acesso à literatura
espírita. Não acredito em infernos, acredito é na responsabilização pelos
nossos atos, e se você cometer essa estupidez ficará numa situação muito pior
da que está agora, e tudo isso que você está passando lhe parecerá um agradável
piquenique. Se fizer isso vai se arrepender, mas vai ser tarde.”
Percebe
que está cedendo, sensibilizada pela minha argumentação, e foge. Dá as costas e
abre a porta, impondo-se não me ouvir mais.
E
antes de sair, vira-se, olha-me nos olhos e com muita convicção afirma: “eu te amo. Não se esqueça nunca disso. Eu
te amo!”
E
sai.
XXIX
Estou sentado na poltrona, vendo o programa rural
enquanto o jornal local não chega, a morena no quarto penteando o cabelo do
filho, uniformizando-o para a escola, cheiro de café no ar, e o telefone toca.
É
minerva: “pai, a minha mãe tomou veneno.
Está em coma no hospital.”
Lentamente,
letárgico, dissociado de qualquer idéia, vazio, incapaz de ordenar qualquer
pensamento, ponho o fone no gancho.
“Quem era?”, a morena indaga.
“Minerva. A Jocasta tomou veneno, está em coma.” E completo: “se for o mesmo veneno que usávamos
para exterminar os ratos na granja não há saída. É um veneno muito poderoso.
Não vai demorar outro telefonema, ela não vai resistir.”
Reconquistar agora cada filho, um a um, sorvendo
sapos como se balas de anis ou hortelã, porque dor nenhuma poderão impor a mim
maior que a dor de um velório de mãe.
Aceitá-los,
fazer-me anteparo da dor, assumir a culpa pela orfandade que lhes impus porque,
ainda que não seja isso, a verdade é só a versão que trazemos.
Acolhê-los,
tornar-me alheio a qualquer acusação, a cobranças, culpas, para não tomar caminho idêntico ao de
Jocasta.
Fazer
de cada minuto momento de reconquista, e esperar o anunciado, Barone pronto
para os meus braços, uma rosa edificada num campo de batalha, porque escrito e
me alertado a quase meio século, antes que seu irmão primeiro chegasse.
Voltarei
a sorrir, é certo, mas sempre a meia boca, envergonhado de estar sorrindo,
amamentando com o meu sangue a dor, esse tumor maligno que me devora, e fingir.
Fingir-me
ainda forte, capaz de liderar e impor diretrizes, senhor de mim e aberto a
todas as verdades, ou do que supus verdades, com a pose do que tem nas mãos o
microfone numa assembléia, milhares esperando que eu aponte por onde, para
onde, mesmo sabendo-me menor que aquele menino no jardim da Dona Maria, mais
envergonhado que quando impotente diante de um corpo nu, mais impotente que
quando assistindo o corpo de papai enrolado num lençol, a caminho do
necrotério, inseguro como num avião na tempestade, desesperado e reduzido, uma
criança próxima a um paiol em chamas.
Assim,
até que o instante último me consuma e alivie.
E
como uma ostra que se crê apartada do mar, enclausurada em sua própria concha,
farei de mim o meu exílio, um velhinho estranho que conversa com os cães, as
galinhas e as cabras, chamando-os de filhos.
XXX
O telefone toca. Não precisaria ter tocado, sei o
que ouvirei.
É
Minerva em prantos: “pai, a minha mãe
faleceu. Te cuida paizinho porque agora só tenho você!”
A
vontade é sair chutando tudo, quebrando tudo, rasgando tudo, destruindo o
apartamento, o prédio, o mundo, a começar por mim próprio.
Não
sei se daqui a pouco estarei com outra família, talvez não, o tempo.
Se
estiver, vou pretendê-la definitiva e somada à primeira, mas longe, muito longe
da felicidade que esperei, mutilada por um velório ao qual não compareci.
Ainda
navegarei aqui por alguns anos, mas sem contá-los.
Não
sei mais como passar pelos vinte e cinco de dezembros.
Não
haverá mais natais!
FIM
In “Não Haverá Mais Natais”, romance autobiográfico.
N.A.
– Solicito aos amigos que, em possíveis comentários, não julguem nem emitam
juízos de valor. Estou partilhando um texto literário, não mais. A Deus e às consciências
dos personagens cabe julgar. Por favor.
Francisco
Costa.